sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Maria Rita Kehl: Alckmin usa a mesma retórica dos matadores da ditadura

viomundo

publicado em 17 de setembro de 2012 às 22:01

por Maria Rita Khel, na Folha de S. Paulo, sugestão de Botelho Pinto


“Quem não reagiu está vivo”, disse o governador de São Paulo ao defender a ação da Rota na chacina que matou nove supostos bandidos numa chácara em Várzea Paulista, na última quarta-feira, dia 12. Em seguida, tentando aparentar firmeza de estadista, garantiu que a ocorrência será rigorosamente apurada.

Eu me pergunto se é possível confiar na lisura do inquérito, quando o próprio governador já se apressou em legitimar o morticínio praticado pela PM que responde ao comando dele.

“Resistência seguida de morte”: assim agentes das Polícias Militares, integrantes do Exército e diversos matadores free-lancer justificavam as execuções de supostos inimigos públicos que militavam pela volta da democracia durante a ditadura civil militar, a qual oprimiu a sociedade e tornou o país mais violento, menos civilizado e muito mais injusto entre 1964 e 1985.

Suprimida a liberdade de imprensa, criminalizadas quaisquer manifestações públicas de protesto, o Estado militarizado teve carta branca para prender sem justificativa, torturar e matar cerca de 400 estudantes, trabalhadores e militantes políticos (dos quais 141 permanecem até hoje desaparecidos e outros 44 nunca tiveram seus corpos devolvidos às famílias -tema atual de investigação pela Comissão Nacional da Verdade).

Esse número, por si só alarmante, não inclui os massacres de milhares de camponeses e índios, em regiões isoladas e cuja conta ainda não conseguimos fechar. Mais cínicas do que as cenas armadas para aparentar trocas de tiros entre policiais e militantes cujos corpos eram entregues às famílias totalmente desfigurados, foram os laudos que atestavam os inúmeros falsos “suicídios”.


HERZOG
A impunidade dos matadores era tão garantida que eles não se preocupavam em justificar as marcas de tiros pelas costas, as pancadas na cabeça e os hematomas em várias partes do corpo de prisioneiros “suicidados” sob sua guarda. Assim como não hesitaram em atestar o suicídio por enforcamento com “suspensão incompleta”, na expressão do legista Harry Shibata, em depoimento à Comissão da Verdade, do jornalista Vladimir Herzog numa cela do DOI-Codi, em São Paulo.

Quando o Estado, que deveria proteger a sociedade a partir de suas atribuições constitucionais, investe-se do direito de mentir para encobrir seus próprios crimes, ninguém mais está seguro. Engana-se a parcela das pessoas de bem que imaginam que a suposta “mão de ferro” do governador de São Paulo seja o melhor recurso para proteger a população trabalhadora.

Quando o Estado mente, a população já não sabe mais a quem recorrer. A falta de transparência das instituições democráticas -qualificação que deveria valer para todas as polícias, mesmo que no Brasil ainda permaneçam como polícias militares- compromete a segurança de todos os cidadãos.

Vejamos o caso da última chacina cometida pela PM paulista, cujos responsáveis o governador de São Paulo se apressou em defender. Não é preciso comentar a bestialidade da prática, já corriqueira no Brasil, de invariavelmente só atirar para matar -frequentemente com mais de um tiro.

Além disso, a justificativa apresentada pelo governador tem pelo menos uma óbvia exceção. Um dos mortos foi o suposto estuprador de uma menor de idade, que acabava de ser julgado pelo “tribunal do crime” do PCC na chácara de Várzea Paulista. Ora, não faz sentido imaginar que os bandidos tivessem se esquecido de desarmar o réu Maciel Santana da Silva, que foi assassinado junto com os outros supostos resistentes.

Aliás, o “tribunal do crime” acabara de inocentar o acusado: o senso de justiça da bandidagem nesse caso está acima do da PM e do próprio governo do Estado. Maciel Santana morreu desarmado. E apesar da ausência total de marcas de tiros nos carros da PM, assim como de mortos e feridos do outro lado, o governador não se vexa de utilizar a mesma retórica covarde dos matadores da ditadura -”resistência seguida de morte”, em versão atualizada: “Quem não reagiu está vivo”.


CAMORRA
Ora, do ponto de vista do cidadão desprotegido, qual a diferença entre a lógica do tráfico, do PCC e da política de Segurança Pública do governo do Estado de São Paulo? Sabemos que, depois da onda de assassinatos de policiais a mando do PCC, em maio de 2006, 1.684 jovens foram executados na rua pela polícia, entre chacinas não justificadas e casos de “resistência seguida de morte”, numa ação de vendeta que não faria vergonha à Camorra. Muitos corpos não foram até hoje entregues às famílias e jazem insepultos por aí, tal como aconteceu com jovens militantes de direitos humanos assassinados e desaparecidos no período militar.

Resistência seguida de morte, não: tortura seguida de ocultação do cadáver. O grupo das Mães de Maio, que há seis anos luta para saber o paradeiro de seus filhos, não tem com quem contar para se proteger das ameaças da própria polícia que deveria ajudá-las a investigar supostos abusos cometidos por uma suposta minoria de maus policiais. No total, a polícia matou 495 pessoas em 2006.

Desde janeiro deste ano, escreveu Rogério Gentile na Folha de 13/9, a PM da capital matou 170 pessoas, número 33% maior do que os assassinatos da mesma ordem em 2011. O crime organizado, por sua vez, executou 68 policiais. Quem está seguro nessa guerra onde as duas partes agem fora da lei?


ASSASSINATOS
A pesquisadora norte-americana Kathry Sikkink revelou que o Brasil foi o único país da América Latina em que o número de assassinatos cometidos pelas polícias militares aumentou, em vez de diminuir, depois do fim da ditadura civil-militar.

 Mudou o perfil socioeconômico dos mortos, torturados e desaparecidos; diminuiu o poder das famílias em mobilizar autoridades para conseguir justiça.

Mas a mortandade continua, e a sociedade brasileira descrê da democracia.
Hoje os supostos maus policiais talvez sejam minoria, e não seria difícil apurar suas responsabilidades se houvesse vontade política do governo. No caso do terrorismo de Estado praticado no período investigado pela Comissão da Verdade, mais importante do que revelar os já conhecidos nomes de agentes policiais que se entregaram à barbárie de torturar e assassinar prisioneiros indefesos, é fundamental que se consiga nomear toda a cadeia de mando acima deles.

Se a tortura aos oponentes da ditadura foi acobertada, quando não consentida ou ordenada por autoridades do governo, o que pensar das chacinas cometidas em plena democracia, quando governadores empenham sua autoridade para justificar assassinatos cometidos pela polícia sob seu comando?

Como confiar na seriedade da atual investigação, conduzida depois do veredicto do governador Alckmin, desde logo favorável à ação da polícia? Qual é a lisura que se pode esperar das investigações de graves violações de Direitos Humanos cometidas hoje por agentes do Estado, quando a eliminação sumária de supostos criminosos pelas PMs segue os mesmos procedimentos e goza da mesma impunidade das chacinas cometidas por quadrilhas de traficantes?

Não há grande diferença entre a crueldade praticada pelo tráfico contra seis meninos inocentes, no último domingo, no Rio, e a execução de nove homens na quarta, em São Paulo. O inquietante paralelismo entre as ações da polícia e dos bandidos põe a nu o desamparo de toda a população civil diante da violência que tanto pode vir dos bandidos quanto da polícia.

“Chame o ladrão”, cantava o samba que Chico Buarque compôs sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Hoje “os homens” não invadem mais as casas de cantores, professores e advogados, mas continuam a arrastar moradores “suspeitos” das favelas e das periferias para fora dos barracos ou a executar garotos reunidos para fumar um baseado nas esquinas das periferias das grandes cidades.


PELA CULATRA
Do ponto de vista da segurança pública, este tiro sai pela culatra. “Combater a violência com mais violência é como tentar emagrecer comendo açúcar”, teria dito o grande psicanalista Hélio Pellegrino, morto em 1987.

E o que é mais grave: hoje, como antes, o Estado deixa de apurar tais crimes e, para evitar aborrecimentos, mente para a população. O que parece ser decidido em nome da segurança de todos produz o efeito contrário. O Estado, ao mentir, coloca-se acima do direito republicano à informação -portanto, contra os interesses da sociedade que pretende governar.

O Estado, ao mentir, perde legitimidade -quem acredita nas “rigorosas apurações” do governador de São Paulo? Quem já viu algum resultado confiável de uma delas? Pensem no abuso da violência policial durante a ação de despejo dos moradores do Pinheirinho… O Estado mente -e desampara os cidadãos, tornando a vida social mais insegura ao desmoralizar a lei. A quem recorrer, então?

A lei é simbólica e deve valer para todos, mas o papel das autoridades deveria ser o de sustentar, com sua transparência, a validade da lei. O Estado que pratica vendetas como uma Camorra destrói as condições de sua própria autoridade, que em consequência disso passará a depender de mais e mais violência para se sustentar.


Maria Rita Khel é psicanalista e integrante da Comissão Nacional da Verdade

Luiz Flávio Gomes: “Um mesmo ministro do Supremo investigar e julgar é do tempo da Inquisição”

publicado em 18 de setembro de 2012 às 18:42
por Conceição Lemes


viomundo

Desde o início do julgamento do “mensalão”, a sociedade assiste ao ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal (STF), cumprir dois papéis. O de policial, pois participou de todo o processo de investigação. E o de julgador, já que vota também sobre o destino dos 38 acusados no processo.

Isso me chamou a atenção. Como leiga no assunto, me fiz várias perguntas: não haveria aí um conflito de interesse? É justo? Qual o procedimento adotado nos países desenvolvidos? A dupla-função não poderia contaminar o processo?
“Pelo artigo 230 do Regimento do Supremo, não há problema. Um mesmo ministro pode presidir a fase de investigação e julgar”, explica o advogado criminal Luiz Flávio Gomes. “Porém, por força da Corte Interamericana de Direitos Humanos, quem preside a investigação, não pode participar depois do processo.”

“O regimento interno do Supremo é ultrapassado, autoritário, despótico”, ressalta. “Esse dispositivo de um mesmo ministro cumprir dois papéis é absurdo. Isso é da Idade Média. No tempo da Inquisição era assim:  o juiz investigava e julgava.”

Durante 15 anos, Luiz Flávio Gomes foi juiz criminal em São Paulo. Depois, aposentou-se e advogou por dois anos. É fundador da maior rede de ensino à distância na área jurídica do país. Nesse ramo, é concorrente do ministro Gilmar Mendes, do STF. É considerado um estudioso do Direito. Por isso, segue a nossa entrevista na íntegra.


Viomundo – O ministro Joaquim Barbosa presidiu a investigação do  “mensalão” e está julgando o caso. Não há problema nisso?
Luiz Flávio Gomes — Pelo artigo 230 do Regimento Interno do Supremo, é legítimo, legal, não há nenhum problema. Porém, por força da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que fica em San José da Costa Rica, não pode.

A Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos diz:  quem preside a investigação não pode participar depois do processo, porque aí  cumpre dois papéis.  Um é o de investigador. E outro de juiz. E isso não pode. O juiz tem de ser imparcial;  juiz não pode ter vínculos com as provas antes do julgamento.

Portanto, o regimento interno do nosso Supremo é  ultrapassado, autoritário e absurdo, pois permite que o mesmo ministro cumpra dois papéis, como está acontecendo agora.


Viomundo – Pela Corte Interamericana, o ministro Barbosa não poderia acumular as duas funções?
Luiz Flávio Gomes – Não se trata especificamente do ministro Joaquim Barbosa. Qualquer que fosse o ministro do Supremo designado para a fase de investigação, ele não deveria julgar. Se o fizer, estará seguindo um dispositivo arcaico, ultrapassado e que não condiz com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.


Viomundo – O STF usa a mesma conduta para outros casos?
Luiz Flávio Gomes – Sim. É da tradição do Supremo, porque segue rigorosamente o artigo  230 do Regimento Interno. Porém, isso é do tempo do Brasil ditatorial. É uma regra que não condiz hoje com a democracia, com os valores de um juiz imparcial.


Viomundo – Essa norma vem da ditadura militar?
Luiz Flávio Gomes – É de bem antes. Antigamente, um caso ou outro caso ia para o Supremo. E num país racista, classista, como o nosso, gente de cima não ia a julgamento. Então nunca ninguém chamou atenção para isso.
Mas, de uns tempos para cá, com mais réus respondendo processo no Supremo, já se começa a perceber que a legislação do próprio Supremo é muito ultrapassada, está incorreta, não é justa. Eu não queria ser julgado por um juiz que investigou na fase anterior. Eu quero ser julgado por um juiz imparcial.


Viomundo – O juiz que investiga e julga ficaria contaminado?
Luiz Flávio Gomes – Perfeito! É essa a expressão correta. A doutrina italiana usa, inclusive, essa expressão. O juiz fica psicologicamente envolvido com o que ele faz antes e aí está contaminado para atuar depois no processo.

No caso do STF, o ministro que investiga é quem determina as provas, quebras de sigilo, oitiva dessa ou daquela pessoa  e assim por diante. Ele preside tudo sozinho desde o começo. Essa é a norma. Os demais ministros só conhecem o resultado de tudo isso, o que está no papel. Esse é o regimento do STF. Porém, ele conflita com o regulamento da  Corte Interamericana de Direitos Humanos.



Viomundo – Como funciona em outros países?
Luiz Flávio Gomes – Tem um caso famoso – Las Palmeras contra a Colômbia –  que aconteceu algo igual ao que está ocorrendo aqui agora. Um juiz presidiu a investigação e depois participou do julgamento.

Esse caso foi para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que disse: não pode.  O magistrado que cumpre o duplo papel de “parte” (investigador) e de juiz viola a garantia do juiz imparcial. Em função disso, a Corte anulou totalmente o julgamento realizado na Colômbia.

Respondendo então diretamente à sua pergunta: no mundo inteiro civilizado, o duplo papel não pode, pois conflita com o juiz imparcial.

Não é achismo meu, Luiz Flávio. É a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos que diz que o juiz não pode cumprir o papel de policial, investigador, e depois o de juiz.


Viomundo — Qual a diferença entre a investigação do procurador-geral da República e a do ministro do STF?
Luiz Flávio Gomes — O procurador também faz investigação. Ele tem o papel efetivo de acusar as pessoas. Ele investiga antes de tudo. Para ele acusar, ele tem de ter provas. O papel dele é esse mesmo.

O problema é que quem vai julgar depois tem de ser alguém que não tenha tido nenhum contato com este momento anterior, por já estar  psicologicamente envolvido com tudo.


Viomundo – Que conseqüência esse duplo papel pode ter?

Luiz Flávio Gomes – Certamente o caso será levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que depois remeterá para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

É grande a possibilidade de esse processo ser anulado, como no caso da Colômbia.  Já existe jurisprudência precedente naquela corte. Não é novidade para a Corte Interamericana. Além disso, deve mandar o Brasil fazer um novo julgamento, com juiz imparcial.


Viomundo — Como é a nossa relação com  a Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Luiz Flávio Gomes — Cada país adere ou não adere. E o Brasil aderiu em 1998. Portanto, quem adere, tem que cumprir o que a Corte determina. Por exemplo, a Maria da Penha, aquela senhora que apanhou do marido e quase foi morta. Ela para conquistar o que pleiteava teve de recorrer à  Corte Interamericana de Direitos Humanos, porque a Justiça brasileira não estava funcionando para o caso dela.

E o que aconteceu com a Maria da Penha? O Brasil acabou cumprindo direitinho tudo o que a Corte Interamericana determinou.

E por que o Brasil cumpriu? Porque aderiu. Existe uma expressão latina que nós
usamos no campo do Direito que diz o seguinte: você não é obrigado a assinar nenhum documento, mas se assinou, tem de seguir.

Por isso existe uma grande possibilidade de esse caso ser remetido à Corte Interamericana.


Viomundo — Teria algum outro motivo para isso acontecer?
 Luiz Flávio Gomes – Tem, sim. Dos 38 réus da Ação Penal 470, apenas três deles deveriam ser julgados pelo STF; os outros 35, não, pois não têm direito a recurso.


Viomundo – Por favor, explique melhor.  
Luiz Flávio Gomes — Os que têm de ser julgados pelo STF são os três deputados: João Paulo Cunha (PT-SP), Valdemar da Costa Neto (PR-SP) e Pedro Henri (PP-SP).  Até por causa do foro privilegiado, já que são parlamentares, têm que ser julgados pelo Supremo e não há nenhum órgão acima. Por isso são julgados uma só vez.

Já os outros 35 tinham de ir para a Justiça de primeiro grau, serem julgados e, aí, prosseguir o processo. É o que nós chamamos de duplo grau de recurso. Só que eles não tiveram direito a isso.  O STF lhes negou.

E o que é pior. Neste final de semana, um jornal trouxe a informação de que o esse processo tem outros 80 réus. Só que esses 80 réus terão direito a duplo grau de recurso. E os 35 não terão. Esse tratamento desigual é absurdo.

 Os 35 não têm por causa de três. Só que 80 do mesmo caso vão ter duplo grau de recurso porque o processo foi para outras instâncias. Os 35 estão sendo tratados de maneira desigual.

Um peso e duas medidas para uma mesmíssima situação.  Portanto, esse é outro problema que com certeza vai acabar na Corte Interamericana de Direitos Humanos.


Viomundo — Isso tudo vai ser decidido a curto prazo?
Luiz Flávio Gomes – O Supremo cumpre logo a sua função. Pelo que vimos, vai condenar praticamente todo mundo. Agora, ser condenado não significa que aqueles que terão penas de prisão irão automaticamente para cadeia.  Haverá embargos. Aí, depois, transitará em julgado.


Viomundo – Indo para a Corte Interamericana de Direitos Humanos o que acontecerá?
Luiz Flávio Gomes – Há duas coisas. Lá , o processo é moroso e não suspende o que foi resolvido aqui até a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Se o Supremo mandar alguém para a cadeia, a pessoa irá para a cadeia normalmente.

Mas, no futuro, a Corte deverá anular o julgamento. Nessa altura, o pessoal já terá cumprido pena. De qualquer maneira, essas pessoas terão direito a indenização. E certamente a Corte vai mandar o STF refazer o seu regimento interno.


Viomundo – É esse o encaminhamento que imagina que vai ser dado?
Luiz Flávio Gomes – Sim. A Corte Interamericana vai mandar o Brasil refazer o seu regimento interno, pois é um dispositivo despótico. Isso é da Idade Média. Nos processos da Inquisição era assim: o mesmo juiz investigava e julgava. E isso  inconcebível numa democracia, em pleno XXI.

Pablo Gutiérrez: Corte pode ordenar anulação do julgamento da AP 470

publicado em 12 de dezembro de 2012 às 10:39


Pablo Gutiérrez: O duplo grau de jurisdição para os réus é uma das exigências da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ao não garanti-lo, o julgamento violou o Pacto de São José da Costa Rica

por Conceição Lemes

Ao longo do julgamento da Ação Penal 470 no Supremo Tribunal Federal (STF), o Viomundo entrevistou os juristas Dalmo de Abreu Dallari, Rubens Casara e Luiz Flávio Gomes. Os três disseram que o caso do mensalão quase certamente será remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos, à qual o Brasil aderiu há mais de dez anos.

Motivo: vários equívocos no processo. Um deles, a dupla-função. Quem preside a fase de investigação não pode depois participar do julgamento, porque aí cumpre os papéis de investigador e de juiz.

Foi o que fez o ministro Joaquim Barbosa, atual presidente do Supremo. Pelo artigo 230 do STF, não há nada errado com essa conduta.

Porém, para a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos esse duplo-papel é inadequado, independentemente de quem seja o ministro. O juiz tem de ser imparcial, não pode ter vínculos com as provas antes do julgamento.

Outro equívoco apontado pelos juristas ouvidos pelo Viomundo: 35 dos 38 réus não tiveram direito à segunda instância. Por decisão do Supremo, o julgamento de todos foi apenas em uma instância, o STF, embora 35 não tivessem direito ao chamado foro privilegiado.

Tão logo se aventou a possibilidade de os réus apelarem à Corte Interamericana, os ministros Joaquim Barbosa e Marco Aurélio Mello desdenharam. Barbosa chamou a ação de tentativa de “enganar o público leigo” por pensar que poderia ser revertida. Mello definiu-a como “direito de espernear”.

O professor argentino Pablo Angel Gutiérrez Colantuono discorda da interpretação de ambos. Especialista em direitos humanos e tratados internacionais, é autor do livro Administración Pública, Juridicidad y Derechos Humanos. A convite do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura (Ibeji), Gutiérrez esteve recentemente em São Paulo, para fazer uma palestra na Advocacia Geral da União. No final dessa semana, nós conversamos mais sobre o assunto.

Viomundo – Os réus condenados na Ação Penal 470 podem realmente recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Pablo Gutiérrez – Eu não conheço tecnicamente o caso a que você refere. Porém, geralmente, nos países que fazem parte do Pacto de São José da Costa Rica, qualquer cidadão que teve violado os seus direitos humanos pelo Estado pode, uma vez esgotados todos os recursos internos, apresentar o “seu caso” à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E esta, se julgar procedente, apresentar “o caso” à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O Brasil, como você bem sabe, é Estado Membro do Pacto de São José. Portanto, qualquer cidadão brasileiro pode representar ao sistema americano de direitos humanos, desde que alguns procedimentos sejam seguidos.


Viomundo — O senhor considera “cinismo” ou “enganação do público leigo” recorrer à Corte Interamericana?
Pablo Gutiérrez – A proteção dos direitos humanos é dever primário dos Estados Membros do Pacto. Isso vale para todos os poderes. Apelar à Justiça nacional ou internacional é um direito fundamental do homem -– a chamada tutela judicial efetiva.

A Corte Interamericana tem insistido para que os juízes de cada Estado Membro efetuem o denominado controle da convencionalidade, enquanto decidem sobre causas judiciais.

Controle da convencionalidade significa analisar os níveis de compatibilidade de normas, atos administrativos e interpretações judiciais em relação às normas do sistema americano de direitos humanos. Esse controle deve ser realizado automaticamente pelos juízes, de ofício, ou seja, sem que as partes solicitem.
Todo cidadão também tem o direito de solicitar aos juízes que apliquem ao seu caso o controle da convencionalidade. Portanto, é fundamental que o Estado Membro assegure internamente o direito a esse recurso -– artigo 25 e 8 do Pacto de São José da Costa Rica –, que deve ser julgado por juízes independentes e imparciais em relação ao processo em questão, assegurando, especialmente nas questões penais, a garantia do duplo grau de jurisdição [também chamado por alguns juristas de duplo grau de recurso].

Uma sentença judicial deve ser sempre revisada por uma segunda instância superior àquela que proferiu a condenação. É a chamada “garantia do duplo grau de jurisdição ou do duplo controle” – artigo 8, parágrafo 2, alínea h, do Pacto de São José da Costa Rica.

Em resumo: recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos é uma garantia fundamental protegida internacionalmente, faz parte da tutela judicial efetiva como direito humano da pessoa.


Viomundo – Qual o papel da Corte Interamericana?
Pablo Gutiérrez – Nos países que aceitaram soberanamente a sua jurisdição, a Corte Interamericana de Direitos Humanos é o último tribunal em matéria de direitos e garantias.

É o órgão jurisdicional do sistema americano de direitos humanos. Ele foi pensado com as seguintes características:
a) é uma proteção transnacional dos direitos e garantias do homem;
b) é uma proteção subsidiária à do Estado. Isso significa que cabe primeiro ao Estado proteger, promover e garantir internamente os direitos humanos. E todas as autoridades públicas — executivo, legislativo e judicial – são obrigadas a fazê-lo;
c) se o Estado Membro viola esse sistema de proteção e garantias,o cidadão, uma vez esgotados todos os recursos legais e administrativos, pode recorrer à instância internacional, via Pacto de São José da Costa Rica.


Viomundo – Como se dá esse processo?
Pablo Gutiérrez – Apresenta-se uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Aí, ao tramitar, é dada ao Estado a oportunidade de se defender e até mesmo propor um acordo. A Comissão é que vai decidir se o caso deve ou não ser submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Uma vez apresentado o caso à Corte Interamericana, ela analisa se houve ou não violação de alguma das obrigações gerais dos artigos 1.1 e 2 do Pacto de São José da Costa Rica.

O artigo 1.1 estabelece que os Estados Membros têm de respeitar os direitos e liberdades reconhecidos pela Corte para garantir o pleno e livre exercício a toda pessoa sob sua jurisdição. Isso se impõe não apenas em relação ao poder do Estado mas também em relação à atuação de terceiros.

O artigo 2  estabelece as medidas necessárias para garantir os direitos humanos previstos no Pacto de São José em relação a alguma obrigação especial. É importante registrar que os tratados de direitos humanos, como o de São José da Costa Rica, outorgam direitos aos cidadãos e deveres principalmente aos Estados. E os Estados estão obrigados a cumprir tanto o Tratado de São José como as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, porque assim determina o Tratado. Também porque a Convenção de Viena de Tratados estabelece que eles sejam cumpridos sob o princípio da boa fé.


Viomundo – Em que casos se pode recorrer à Corte Interamericana?
Pablo Gutiérrez – A causa é a violação pelo Estado Membro dos deveres gerais de assegurar, promover e proteger os direitos e garantias assegurados no Pacto de São José da Costa Rica – artigos 1.1 e 2 do Pacto. O Estado está obrigado não apenas a eliminar os obstáculos internos,  mas também a adotar decisões que promovam e protejam positivamente os direitos humanos.


Viomundo – A Corte Interamericana poderia funcionar como uma espécie de tribunal para o Supremo Tribunal Federal brasileiro?
Pablo Gutiérrez – Tecnicamente a Corte Interamericana de Direitos Humanos não é uma quarta instância judicial, tampouco é um “tribunal de apelação” dos tribunais internos de cada país.

A Corte Interamericana não julga novamente as responsabilidades penais, civis. O que ela faz é condenar a violação por parte do Estado por atos administrativos, leis ou sentenças judiciais, que violem os direitos humanos.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem condenado Estado Membro por não assegurar investigação efetiva e processo justo, por exemplo. Também por não garantir  proteção de menores de idade, populações indígenas, população privada de liberdade. Assim como por violar a liberdade de imprensa, a privacidade e a propriedade, entre outras tantas infrações.

Agora, uma vez o Estado condenado pela Corte Interamericana, porque seus processos judiciais e administrativos desrespeitam o sistema internacional, ela pode, no âmbito interno, direta ou indiretamente, gerar consequências:
a) uma nova ação na Justiça;
b) indenização por parte do Estado pela infração;
c) atos públicos de reconhecimento da responsabilidade internacional;
d) medidas para conscientizar os funcionários públicos – inclusive o Poder Judiciário – dos parâmetros que regem o sistema internacional de direitos humanos.

Um exemplo das implicações das decisões da Corte Interamericana no sistema judicial é  é o caso da Argentina e a atuação judicial nos crimes de lesa humanidade.

A adequação da Corte Suprema de Justiça da Argentina aos critérios da Corte Interamericana gerou a investigação dos delitos cometidos durante a última ditadura militar, declarando nulas as leis de anistia daquele tempo e aceitando esses crimes como imprescritíveis. Esse é justamente o critério da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Nesse e em quaisquer outros tipos de processos judiciais, é sempre imprescindível o respeito irrestrito à garantia do devido processo judicial. Ou seja, presunção da inocência, duplo grau de jurisdição, devida fundamentação das sentenças, direito a um advogado, um intérprete no caso de ser um estrangeiro, oferecer, produzir e controlar as provas, direito a um juiz imparcial e independente, entre outras garantias.

Na Argentina, a Suprema Corte de Justiça tem um critério de ampla convergência entre as suas sentenças e as da Corte Interamericana. Parte disso se explica porque o Pacto de São José da Costa Rica, entre outros instrumentos internacionais, foi incorporado ao mesmo nível que a Constituição Nacional no sistema legal argentino.


Viomundo – As decisões da Corte Interamericana têm caráter de recomendação ou de determinação ao Estado Membro condenado?
Pablo Gutiérrez – Não são recomendações, são sentenças que condenam e ordenam meios eficazes para reparação das vítimas. Desde 25 de setembro de 1992, o Brasil é um Estado Membro da Convenção Americana. O artigo 62 dessa mesma convenção reconheceu a competência contenciosa da Corte em 10 de dezembro de 1998. O artigo 67 da Convenção Americana estipula que as sentenças da Corte devem ser prontamente cumpridas pelo Estado e de forma integral.

Além disso, o artigo 68.1 da Convenção Americana estipula que os Estados Membros se comprometem a cumprir a decisão da Corte Interamericana em todos os casos em que sejam partes. Portanto, os Estados devem assegurar internamente a implementação do disposto pela Corte Interamericana em suas decisões.

Tal como diz a Corte Interamericana de Direitos Humanos “a obrigação de cumprir o disposto nas sentenças do Tribunal [Corte Interamericana de Direitos Humanos] corresponde a um princípio básico do Direito Internacional, respaldada pela jurisprudência internacional, segundo a qual os Estados devem cumprir com as suas obrigações decorrentes de tratados internacionais  de boa fé  (pacta sunt servanda) e, como tem assinalado esta Corte e o disposto no artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, aqueles não podem, por razões internas, deixar de assumir a responsabilidade internacional já estabelecida. As obrigações convencionais dos Estados Membros vinculam a todos os poderes e órgãos do Estado.”


Viomundo – O que pode acontecer se o país não acatar as determinações da Corte?
Pablo Gutiérrez – Uma vez pronunciada a sentença condenatória, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem poderes inerentes às funções jurisdicionais. Uma delas é a supervisão do cumprimento das suas decisões.
Essa atribuição inclui o dever do Estado de informar à Corte Interamericana sobre as medidas adotadas para o cumprimento do que ela ordenou em suas sentenças.

A informação adequada ao Tribunal sobre como cada um dos pontos determinados é fundamental para avaliar a situação do cumprimento da sentença no seu conjunto. Também, e em caso de persistência do não cumprimento por parte do Estado Membro, essa informação constará dos relatórios anuais da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre os ditos descumprimentos.

É importante ter em mente que é cada vez mais forte a vinculação dos sistemas internacionais de direitos humanos com aqueles que têm como objeto atingir os sistemas comunitários ou de integração, principalmente econômicos.

Um exemplo é a União Europeia. A condição para integrá-la é que os novos países adotem o denominado Tratado de Direitos Humanos Europeu, o Tratado de Roma.

Um exemplo de cumprimento por parte do Brasil de sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos é o caso Escher y otros vs. Brasil. A resolução, de 19 de junho de 2012, determinou o pleno cumprimento pelo Brasil da sentença da Corte Interamericana, ditada em 6 de julho de 2009.


Viomundo — A Corte Interamericana pode determinar um novo julgamento da Ação Penal 470?
Pablo Gutiérrez – A Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Herrera Ulloa vs Costa Rica, em 2 de julho de 2004, ordenou o Estado a tornar sem efeito a sentença ditada em seu país por haver violado, entre outras, a garantia do artigo 8, parágrafo 2, alínea h. É a garantia do duplo grau de jurisdição!

É um exemplo daquilo que pode ocorrer se um país incorre em responsabilidade internacional: tornar sem efeito o ato estatal – no caso a sentença – ou os efeitos de tal ato.   Nesse caso, também se condenou a Costa Rica a, num prazo razoável, modificar o seu sistema legal interno para assegurar o direito a uma dupla instância.

Caso se detecte essa infração em algum caso no Brasil e ela, junto com outras infrações, violem os artigos 1.1 e 2 do Pacto de São José da Costa Rica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos pode tornar sem efeito a sentença do Estado brasileiro.


Viomundo – No julgamento da Ação Penal 470, os réus não tiveram direito ao duplo grau de jurisdição. Isso pode fazer com que a Corte Interamericana torne as sentenças sem efeito e determine novo julgamento?
Pablo Gutiérrez – A Corte Interamericana de Direitos Humanos pode ordenar anulação do  julgamento porque ele violou o Pacto de São José de Costa Rica.  O direito ao duplo grau de jurisdição é uma das exigências da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A Vale: Antes de depois da privatização


A Vale antes e depois da privatização

Por Sérgio Troncoso
 
Nassif, o Lucio Flavio Pinto produziu textos com pouco tempo entre eles, desnudando alguns pontos sobre a Vale privatizada e se afinal ela realmente ajuda o país mais do que quando era estatal. Acho que você poderia colocar a sua "colher" nesse assunto qualquer hora dessas. Um abraço.
Do blog A Vale que vale
Imposto: não é com a Vale

Publicado por Lúcio Flávio Pinto ⋅ 19 de maio de 2012 ⋅

De 1997, quando a Lei Kandir entrou em vigor, isentando de imposto a exportação de produtos semielaborados (ou não industrializados), até o ano passado, a antiga Companhia Vale do Rio Doce recolheu pouco mais de 540 milhões de reais em ICMS ao Pará pela venda ao exterior do minério de ferro de Carajás, o melhor do mundo. O ano recorde de pagamento do principal imposto estadual pela ex-estatal foi 2009, quando o valor chegou a R$ 197 milhões.

Nos 10 anos dos governos tucanos seguidos de Almir Gabriel e Simão Jatene, de 1997 a 2006, o recolhimento de ICMS somou R$ 236 milhões. Nos quatro anos de Ana Júlia Carepa, do PT, a soma foi de R$ 304 milhões.

Por incrível que possa parecer, de 1997 a 2001, a Vale contribuiu para o erário com menos de R$ 6 milhões em impostos sobre minério de ferro exportado, o principal item da pauta de exportação do Pará e do Brasil. Em 1997 a CVRD foi privatizada e, não por mera coincidência, entrou em vigor a famigerada Lei Kandir, de autoria do ex-ministro de Fernando Collor de Mello e então deputado federal por São Paulo, Antônio Kandir. O ICMS pago pela Vale foi então de R$ 18.828,37. Menos do que pagou ao tesouro estadual um supermercado da esquina.

O recolhimento deu um “enorme” salto no ano seguinte: foi para R$ 173 mil. Patinou em R$ 177 mil em 1999. Saltou para R$ 1,9 milhão em 2000 e foi multiplicado para R$ 4,5 milhões em 2001. Ou seja: em seis anos, a média anual de contribuição tributária da mineradora para o Estado foi de R$ 1,2 milhão. Parabéns ao deputado Kandir. E – provavelmente – otras cositas más para ele.

Aí a China atacou o mercado internacional com sua fome insaciável de aço. O ICMS recolhido em 2002 alcançou R$ 38 milhões. Baixou para R$ 26 milhões do ano seguinte, infletiu para R$ 38 milhões em 2004 e ficou pouco acima de R$ 60 milhões em 20005 e 2006.

Neste caso, sim, por mera circunstância quanto a políticas e realidades locais, a fatura tributária da Vale despencou para pouco abaixo de R$ 40 milhões entre 2007 e 2008, já no governo de Ana Júlia. Aparece então o fenômeno de 2009, dos R$ 197 milhões. Graças à recuperação da vitalidade da economia chinesa depois da crise financeira internacional. Mas entre 2010 e 2011 a queda voltou a ser brutal: para R$ 29 milhões e R$ 31 milhões nos dois anos, respectivamente. Nos quatro meses deste ano a conta ainda não chegou a R$ 12 milhões

O minério de ferro ainda é o grande negócio da Vale – no mundo, no Brasil e no Pará. Mas os números mudam com o avanço da mineradora sobre outras substâncias minerais depositadas no subsolo de Carajás. No mesmo período a exploração de ferro na nova mina, a de Serra Leste, subiu de R$ 6 milhões no acumulado até 2006 para R$ 299 milhões em 2001, sendo R$ 259 milhões só nesse último ano. Nesses 14 anos, a exploração do cobre da Serra do Sossego rendeu R$ 218 milhões de ICMS. A iniciante produção de níquel do Onça Puma e do Vermelho recolheu pouco mais de R$ 70 milhões.

Todo o Sistema Norte de mineração da Vale rendeu em 14 anos aproximadamente R$ 1,3 bilhão de ICMS ao Pará. A média é de menos de R$ 100 milhões por ano. O Pará vai viver disso?

Esta é a conta do povo. Agora, a contabilidade da empresa.

Em 2011 as exportações totais do Pará foram de 18,3 bilhões de dólares (em torno de R$ 33 bilhões), sendo quase US$ 17 bilhões (ou mais de 90% do total, ou mais de R$ 30 bilhões) de produtos de origem mineral, em bruto ou semielaborados – isentos de impostos, portanto.

A Vale exportou no ano passado 97 milhões de toneladas de minério de ferro de Carajás, com faturamento de 11,7 bilhões de dólares, correspondentes a quase 20 bilhões de reais. Pois bem: esses R$ 20 bilhões renderam R$ 30 milhões de ICMS. Ou 0,15%. Alíquota de desmoralizar qualquer erário; de massacrar qualquer povo. E fazer a festa de outro povo, como o chinês: desses 97 milhões de minério de ferro extraídos e exportados, 47 milhões (exatamente a metade do total) foram para a China, que pagou US$ 5,8 bilhões.

Dá uns US$ 120 por tonelada. É muito se comparado com os US$ 15/25 por tonelada do início de Carajás, na metade dos anos 1980. Mas quem possui minério igual? E quando ele acabar, não depois de 400 anos de exploração, conforme se previa inicialmente, mas em menos de um século, na escala atual de lavra? A partir de 2015 a produção passará para inacreditáveis 230 milhões de toneladas anuais?

Talvez continue a ser maravilhoso para os donos de papeis da Vale com direito a dividendos prioritários, mas e para o Brasil? E para o Estado do Pará? Quem garante? Quem sabe das coisas?

Todos deviam saber. Mas raros se interessam. O que é uma pena – e muito cara. Criei um blog (www.valeqvale.wordpress.com) justamente para conhecermos melhor essa portentosa companhia, esfinge ou cavalo de Tróia. Poucos se apresentaram. Agora estou colocando nas ruas um dossiê especial sobre a Vale (A Vale engorda. O Pará emagrece”, é o título da publicação, com 44 páginas).

É tentativa de provocar o debate, despertar o interesse e mobilizar a vontade dos paraenses. Mais tarde será irremediavelmente tarde. Como já está sendo. Os paraenses continuam desatentos ao movimento do maior trem de cargas do mundo, que leva o filé-mignon dos minérios de Carajás para o exterior, com destino certo: a Ásia. A história do Pará parou, como manda a dança. O trem, não.


CVRD multinacional: qual o preço a pagar?
Publicado por Lúcio Flávio Pinto ⋅ 22 de novembro de 2012 ⋅   
Artigo escrito em 2006 possibilita acompanhar o crescimento da Vale até o tamanho de multinacional.

Em 2002, 10 cidadãos propuseram, perante a justiça do Rio de Janeiro, uma ação popular contra a venda da Companhia Vale do Rio Doce, realizada cinco anos antes, em abril de 1997. Tiveram o cuidado de pedir celeridade processual porque um dos autores já estava com mais de 65 anos de idade.

Mostraram também a relevância de uma definição breve em função da natureza do pedido, que pretendia obrigar a ex-estatal a reparar os danos causados ao interesse público por sua privatização açodada, pelo seu valor de venda subestimado e pelo não cumprimento de obrigações que lhe estavam impostas.

Passados quatro anos, a ação continua sem qualquer decisão na 12ª vara cível do Rio. Constataram os autores que os réus adotaram em conjunto uma estratégia para criar um fato consumado, “tornando ineficazes quaisquer medidas judiciais”. Para alcançar esse propósito, aproveitavam-se “da prudência natural dos julgadores, que somente se animam a exercer o Poder Geral de Cautela quando configuradas situações de risco iminente e manifesto, mas que às vezes chegam a um ponto sem retorno, levando a cogitar da paradoxal tese da ‘sanatória de nulidades em homenagem à boa-fé’”.

Mesmo assim, decidiram, no dia 30 do mês passado [agosto], acrescentar à ação inicial um requerimento de protesto, notificação e interpelação para assegurar que o objetivo da demanda não seja prejudicado ou mesmo inviabilizado: obrigar a CVRD a recolher ao tesouro nacional “expressivas parcelas pecuniárias” que teria sonegado, graças a condições leoninas que a favoreceram na privatização. Esse ressarcimento terá que ser calculado sobre os enormes lucros líquidos que a empresa acumulou desde 1997.

O sinal de alerta soou quando a Vale do Rio Doce anunciou, também em agosto, que apresentara uma “oferta hostil” para a aquisição de todas as ações ordinárias (com direito a voto nas decisões da empresa) da Inco (International Nickel), do Canadá, pelo preço à vista de 86 dólares canadenses por cada ação ordinária, ou 17,7 bilhões de dólares americanos no total, correspondentes, numa livre conversão cambial, a 38,4 bilhões de reais.

Esse valor – lembram os autores populares – equivale a mais de 10 vezes o preço pago (R$ 3,38 bilhões) para a proposta vitoriosa de aquisição do controle acionário da Vale pelo consórcio formado pelo Bradesco, a Bradespar e a Companhia Siderúrgica Nacional, na véspera do leilão de privatização.

Na nota obrigatória de comunicação que enviou à Comissão de Valores Mobiliários, a Vale informou que quatro bancos europeus – Abn Amro, UBS, Credit Suisse e Santander – dariam suporte financeiro à operação, e que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) se colocouà disposição para também apoiar a transação.

O anúncio sobre a maior oferta de compra de uma empresa já apresentada em toda a história da América do Sul teve um efeito imediato: duas agências de classificação de risco, a Moody’s e a Fitch, decidiram revisar negativamente os ratings da Vale. Isso porque, se a oferta da ex-estatal for aceita, sua dívida passará de US$ 5,9 bilhões, em 30 de junho, para US$ 25,6 bilhões. Um crescimento de mais de quatro vezes, capaz de causar preocupações a analistas mais rigorosos.

Os autores se reportam ainda a um comentário que Miriam Leitão fez em sua coluna de economia no jornal O Globo. Segundo ela, o Canadá será “o maior desafio que a Vale tem pela frente. A empresa terá de convencer as autoridades canadenses de que será um bom negócio para o país. Antes de tudo, os investidores terão de dizer se querem vender para a Vale. Mesmo que os investidores prefiram vender para a Vale, as autoridades canadenses poderão dizer não. Por uma lei chamada Canadian Act, o governo do país levanta uma série de questões sobre a operação antes de aprová-la.  E promete dizer sim ou não em 45 dias.  A Vale terá de provar que tem boas intenções, que está comprando a empresa para mantê-la funcionando e investir nela”.

– Não é exagero prever – observam os autores – que, no caso de resultados negativos como entrevistos pelos comentaristas especializados, o controle acionário da CVRD, objeto do multifário contencioso popular, seja transferido ao consórcio de bancos compromissados para a linha de financiamento, a menos que o principal agente da política de investimentos do Governo Federal – a instituição financeira pública BNDES – conceda o apoio financeiro subsidiário suficiente, negado em crises econômicas similares recentes (por exemplo, caso Varig), fazendo real mais uma vez a conhecida fórmula de que, no Brasil, “privatizam-se os lucros e socializam-se os prejuízos”.

Dizem-se constrangidos ao constatar, em momentos como esse, “a vocação de terra espoliada, cornucópia do mundo, como o Brasil, cujas autoridades – diversamente de outros países, como o Canadá no exemplo da hora – não se preocupam nem precisam ser convencidas se uma operação do vulto anunciado ‘será um bom negócio para o país”.

Mas enquanto se compromete publicamente a “participar como membro da comunidade canadense”, a partir da compra da Inco, a segunda maior produtora de níquel do mundo (e dona das maiores jazidas do minério), a Vale não demonstra o mesmo cuidado com suas obrigações no país nativo, “inclusive omitindo mais uma vez em comunicados dessa natureza o fato de existir um enorme contencioso popular” no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Belém, questionando a titularidade do controle societário da empresa.

Desse contencioso “pode resultar no decreto judicial de nulidade da venda”.
Os autores assinalam “o mesmo comportamento descuidado” perante a justiça carioca: nenhum dos três personagens acionados (a Vale, a União e o então presidente Fernando Henrique Cardoso) teve “a preocupação de informar nos autos a operação financeira de alto risco, que põe em perigo de dano irreparável os frutos civis (lucros líquidos), que servem de base ao objeto perseguido na ação popular”.

Entre os quais está o recolhimento dos valores devidos ao fundo de melhoramento e desenvolvimento regional a partir dos lucros líquidos da Vale nos 12 Estados onde a ex-estatal atua. Com o beneplácito e comando do BNDES, essa obrigação legal foi substituída por uma “doação ridícula aviltada” de R$ 86 milhões.

Os autores alertam ainda que a operação de compra da Inco pela Vale, se consumada, além de frustrar os efeitos da ação popular e desrespeitar os direitos dos cidadãos, feridos pela venda da estatal, “representa em si mesmo um manifesto atentado à dignidade da Justiça Brasileira”.

Mesmo que não consigam uma decisão judicial antes de formalizada a transação, anunciam a intenção de propor uma ação de atentado, requerendo a declaração de nulidade da compra da Inco pela Vale.

De imediato, pediram a intimação dos responsáveis pelas duas empresas, para que eles não aleguem no futuro terem agido sem dolo, sabendo que estão usando “recursos financeiros imprescindíveis para assegurar provisão para contingências (possíveis perdas com a ação popular em curso)”.

Também querem a intimação do BNDES, considerando que seu presidente, Demian Fiocca, “tornou público o propósito de suprir com refinanciamento os eventuais danos materiais” decorrentes da aquisição da empresa canadense, “sendo certo que os recursos a serem utilizados para tanto ressumam interesse público”. Pedem igualmente a ampla divulgação do inteiro teor da petição, inclusive no Canadá,

Pode ser que os autores da ação popular continuem a esbarrar no silêncio judicial, mas talvez eles consigam tirar a opinião pública do estado letárgico em que o estrondoso anúncio da aquisição da Inco a tem mantido desde então, fazendo-a pensar em outras consequências desse ato e não só na consagração da CVRD como a primeira multinacional brasileira para valer.


A Vale encolheu. E agora?
Publicado por Lúcio Flávio Pinto ⋅ 10 de janeiro de 2013

 No dia 20 de dezembro a Vale informou à opinião pública ter concluído a avaliação anual da mineração de cobre de Onça Puma e dos ativos de alumínio, ambos no Estado do Pará, “o que implicará no reconhecimento do impairment antes de impostos de US$ 4,2 bilhões, o que impactará nosso resultado contábil no quarto trimestre de 2012”.

A linguagem codificada de “economês” do comunicado deve ter prejudicado o entendimento da gravidade da questão, acessível apenas aos iniciados e aos integrantes do “mercado”.

Ao invés de citar a expressão técnica em língua estrangeira, a mineradora brasileira, podia prestar uma homenagem póstuma a Joelmir Betting. Ele foi o primeiro jornalista da era atual a se comunicar com seus leitores, ouvintes e telespectadores em linguagem humana inteligível. Combateu a irracionalidade da linguagem cifrada, que a Vale voltou a usar na sua nota oficial no encerramento de 2012. Além de ferir o estilo no léxico nacional.

A expressão impairment significa que a empresa perdeu valor em termos quantitativos, mas também em excelência, poder ou eficiência. O termo tem origem no latim; em francês se tornou empetrer.

Claro que o mercado ao qual se destina em primeiro lugar a mensagem da Vale só usa o inglês e tem autorização legal para fazê-lo. Mas por que deixar de lado o português, mais próximo do léxico latino? Questão de esnobismo técnico ou opção consciente pelo recado dirigido só aos iniciados?

Linguagens à parte, a Vale reconheceu, afinal: os problemas surgidos com os dois fornos de Onça Puma determinaram a paralisação total de suas operações de ferro-níquel desde junho de 2012. Segundo o comunicado, após analisar o caso, a Vale “decidiu reconstruir um dos fornos, com custo estimado em US$ 188 milhões em 2013, e planeja a retomada da operação para o quarto trimestre de 2013”.

Em virtude desses problemas “e diante da atual situação de mercado para ferro-níquel, a valoração de Onça Puma determinou a necessidade de reconhecimento de impairment antes de impostos de US$ 2,848 bilhões. O valor contábil de Onça Puma era de US$ 3,778 bilhões em 30 de setembro de 2012”.


Prossegue a comunicação oficial da empresa:
“A volatilidade dos preços do alumínio e as incertezas macroeconômicas sobre a economia europeia contribuíram para redução do valor de mercado da nossa participação de 22% na Hydro ASA (Hydro), produtora de alumínio norueguesa, a um nível inferior ao valor contábil do investimento. Com base nos preços das ações da Hydro em 30 de setembro de 2012, estamos reconhecendo impairment antes de impostos de US$ 1,3 bilhão, o que afetará nosso lucro no 4T12 [quarto trimestre do ano passado].

Apesar destes impactos, permanecemos confiantes nos fundamentos de longo prazo do mercado global de níquel. Ao mesmo tempo, acreditamos no potencial dos ativos da Hydro para criar valor significativo para o acionista como resultado de uma combinação única de uma rica dotação de recursos naturais e de liderança tecnológica em alumínio.

Os impairments anunciados não terão qualquer efeito no fluxo de caixa da Vale e serão tratados como itens excepcionais. Nossa revisão anual de ativos será concluída em conjunto com a divulgação de nossas demonstrações financeiras de 2012 em 27 de fevereiro de 2013”.

Segui linearmente o texto divulgado pela Vale para mostrar que se a empresa praticasse de fato os princípios de transparência que proclama em suas numerosas peças de publicidade, teria dito logo de início que seu valor contábil de balanço, a ser divulgado no próximo mês de fevereiro, sofrerá uma redução de mais de 4,2 bilhões de dólares.

A causa são os graves problemas operacionais na fábrica de níquel do Onça Puma, que terá uma redução de valor de mais de US$ 2,8 bilhões, e da “volatilidade” do alumínio, cujos preços continuam baixos no mercado internacional.

Embora a Vale diga que a correção nos fornos da usina do Onça Puma será suficiente para que a fábrica volte a funcionar no final deste ano, essa previsão parece otimista. O projeto já era muito problemático quando estava sob o controle da empresa canadense Canico.

Sua aquisição pela Vale parece ter sido um impulso sem maior análise do então presidente da empresa, Roger Agnelli, que ficou no cargo durante 10 anos, um recorde na história da antiga Companhia Vale do Rio Doce. Uma explosão ocorreu no primeiro dos fornos em junho.

Quinze dias depois, outra explosão no segundo forno, que continuou funcionando como se nada de anormal tivesse acontecido. Parece que assim como a compra e a implantação seguiram um ritmo acelerado, a operação da usina manteve essas características.

A perda de valor também comprova a irreflexão da Vale na transação que transferiu todo o complexo de alumínio implantado no Pará, compreendendo desde a mineração de bauxita e produção de alumina pela Alunorte (a maior fábrica do mundo) até a metalurgia da Albrás, a oitava maior do mundo, à Norsk Hydro. A multinacional norueguesa conseguiu assim sua plena verticalização, da mina à indústria de transformação.

Em troca, a ex-estatal recebeu da multinacional norueguesa 22% de suas próprias ações. Em fevereiro de 2011, quando a transação se consumou, essas ações valiam US$ 3,5 bilhões. Hoje valem US$ 2,2 bilhões. A Vale entregou um polo integrado de alumínio em troca de ninharia. Foi um dano irreparável à soberania do Brasil nesse setor vital da economia.

A mineradora, que caiu do 2º para o 3º lugar no ranking mundial, o primeiro abalo depois da era imperial de Roger Agnelli, diz ainda acreditar no futuro. Só que ele se tornou menos certo do que antes. O lucro, se houver em 2012, desta vez não terá os valores estratosféricos do passado, que resultavam em dividendos sem igual para os seus donos e acionistas. Mas não em ganho consolidado para o país.

Arquitetura da Destruição

rollingstone -  Edição 56 - Maio de 2011

Intimidações armadas, desapropriações truculentas e incêndios suspeitos se tornam as ferramentas da desenfreada especulação imobiliária para banir as favelas de São Paulo  


por Por Ana Aranha e Maurício Monteiro Filho

"Quando nóis fiquemo sabendo, nem fiquemo acreditando. Mas a família confirmô." Quando Gilsicleide dos Santos fala, com o corpo apoiado no batente da porta, suas frases soam como versos do sambista paulistano Adoniran Barbosa. Mas, na guarda da entrada de seu barraco, um dos últimos a cair na demolição de parte da favela Real Parque, sua voz não apresentava melodia. No intervalo das marretadas, o único som que se ouvia vinha dos passos apressados pelas vielas. Em um fluxo calado, moradores sem camisa carregavam colchões e estrados de cama na contramão de funcionários com marreta na mão, uniforme e capacete, contratados para derrubar mais uma favela no centro financeiro da Zona Sul de São Paulo. O ar estava carregado de pó e o entulho dos barracos já demolidos se misturava a cadernos de escola, sofás rasgados e sapatos sem sola. Crianças desbravavam as ruínas de quartos e cozinhas, mas nem elas faziam barulho. Habituada a discussões de vizinhos por causa dos raps ou funks no último volume, a favela de onde Gilsicleide resistia em sair estava, enfim, em silêncio.

Essa é a segunda vez que a história de Gilsicleide remete à "Saudosa Maloca", não só na ausência de plurais da narrativa, mas em seu conteúdo. Em 2005, ela já havia assistido à demolição de sua casa na favela do Jardim Edite. Foi quando recebeu a notícia com espanto, aquela em que só acreditou quando a família da vítima confirmou: um de seus vizinhos havia morrido debaixo dos entulhos. Seu Mané, como era conhecido, era carroceiro e tentava tirar um pedaço de latão dos restos de um barraco quando uma parede caiu sobre ele. A empreiteira pagou pelo caixão.

"Ele estava bêbado", é a explicação dada ao caso por Elisabete França, superintendente de habitação popular da Secretaria Municipal de Habitação, logo depois de garantir que nunca um morador saíra ferido das ações de remoção. A prefeitura contrata a consultoria Ductor para fiscalizar as normas de segurança. A empresa não deve ter notado que, nos últimos dias do prazo para a saída do Real Parque, uma família com três crianças ainda morava no 2º andar de um sobrado que tinha sua estrutura abalada pela derrubada das paredes do primeiro andar.


Na visão da prefeitura de São Paulo, descaracterizar a fachada das casas vazias é o procedimento para impedir que outras pessoas reocupem o lugar para exigir a compensação financeira. Mas nem sempre o funcionário contratado para fazer o serviço tem o cuidado necessário com as famílias que ainda estão lá. Em um caso específico, um funcionário excedeu na marreta e pegou um quarto ainda habitado por um casal.

Em outro, os moradores tiveram de tomar a marreta das mãos do operário. "Ele estava no andar de cima de um sobrado e batia com tanta força que as paredes do térreo começaram a rachar", diz o vizinho, que correu para evitar a briga. "Tive que pegar a marreta da mão dele e fazer eu mesmo: bati de leve no entorno da janela. Eles fazem de propósito para intimidar quem não saiu." Ainda dentro de sua casa, que também estava com as paredes rachadas e já não tinha água ou luz, esse morador estava decidido a ficar até o último dia da remoção.

Remoção, aliás, é uma palavra banida pela prefeitura paulistana. "Quem acha que a gente faz remoção é um ignorante de pai e mãe. A gente não desaloja ninguém. A gente constrói para eles", diz o secretário da habitação Ricardo Pereira Leite. Ele afirma que, de todas as famílias que moram nas favelas em processo de urbanização, 90% ficam na mesma casa, que é reformada. "Só saem quando estão em área de risco. Nós ajudamos as pessoas. Remover, nunca. Essa palavra está proibida." Qual seria, então, o termo adequado para o momento em que as famílias têm de sair de seus barracos? "Eu chamo de upgrade", ele responde. "Eu chamo de ganhar na loteria", completa Elisabete.

Se a visão da Secretaria sobre o assunto for precisa, pode-se dizer que as famílias que ocupavam 17 barracos da favela do Sapo (localizada na Zona Oeste de São Paulo, entre as pontes do Limão e da Freguesia do Ó) ganharam na Mega-Sena acumulada. Em 10 de fevereiro, as moradias foram derrubadas com o suporte de um verdadeiro aparato de guerra: tratores e integrantes da Guarda Civil Metropolitana e da Tropa de Choque da Polícia Militar. Segundo o vereador Carlos Néder (PT), a ação ocorreu sob o pretexto de respeito ao meio ambiente. Como a favela se localiza às margens de um córrego que deságua no rio Tietê, a remoção seria uma exigência do programa Córrego Limpo, conduzido pela Sabesp, que pretende reverter a degradação desses cursos de água.

Mas, de acordo com relatos, a estratégia de choque e terror não ficou a cargo das forças policiais presentes no local. Durante toda a semana que antecedeu a derrubada dos barracos, um funcionário a serviço da Secretaria, Francisco Evandro Ferreira Figueiredo, visitou a favela, armado e coagindo os moradores.

Evandro é terceirizado da empresa BST Transportes, que foi contratada pela prefeitura, fato confirmado por Elisabete. Era ele quem coordenava as ações naquela quinta-feira de fevereiro, agindo com truculência contra quem contestasse a derrubada das moradias, como um autêntico jagunço.

Evandro não foi localizado pela reportagem para comentar o caso. Mas, segundo Néder, a própria Elisabete França explicou, durante uma reunião para discutir a situação realizada na sede da Secretaria, qual era sua função exata no despejo.

"Segundo Elisabete França, Evandro foi contratado para derrubar as casas, para tirar as pessoas da favela", atesta o vereador. "Ela falou isso na frente de dezenas de testemunhas. É um absurdo que a municipalidade use a violência, a intimidação e a truculência como uma praxe administrativa", completa.

Ao fim da operação, que foi interrompida devido à pressão popular, os entulhos dos barracos demolidos acabaram empilhados dentro do córrego, em pleno auge da temporada de chuvas na capital paulistana.

Aquela não era a primeira vez que moradores da favela do Sapo viam suas casas se tornarem escombros. Já em 2009, a urbanista Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada, constatou o medo e a desorientação dos moradores do local após uma rodada de remoções. Ela chegou a manifestar sua preocupação em uma carta enviada a Elisabete França. "Pelo que pude verificar durante minha visita, as maiores vítimas do conflito que ali se instaurou são mulheres e crianças. De forma geral, a população pareceu-me bastante assustada por desconhecer os projetos exatos da prefeitura para aquele local, assim como por desconhecer os planos para sua remoção", escreveu ela em 23 de agosto de 2009.

Na resposta, a Superintendência de Habitação Popular declarou reconhecer a importância da denúncia, mas também afirmou que, com "a divulgação da notícia de intervenção na área (...), a favela sofreu uma invasão que fugiu dos padrões". No entender do órgão, o interesse desses novos moradores era "furar a fila das prioridades estabelecidas nos programas da prefeitura de São Paulo".

A lógica faz algum sentido, porque, a rigor, as famílias não são exatamente despejadas - como aconteceu com Mato Grosso e Joca, personagens da canção de Adoniran Barbosa. Não chega a ser um bilhete premiado, mas eles saem com direito a R$ 300 ou R$ 400 mensais para alugar outra moradia enquanto a prefeitura constrói o prédio definitivo. A promessa é que, quando ficar pronto, as famílias terão direito a financiar um apartamento no local. Para a Superintendência de Habitação Popular, foi visando o benefício que muitas famílias instalaram seus barracos na favela do Sapo. No entanto, a própria Secretaria assume que esses valores são insuficientes. O destino certo para as pessoas que dispõem dessa verba, numa cidade cara como São Paulo, será outra favela.

Quando saiu do Jardim Edite, Gilsicleide dos Santos e seu marido não acreditaram na promessa do apartamento financiado. Abriram mão da oferta para receber R$ 8 mil pelo barraco. Eles não se arrependem, já que, seis anos depois, a construção ainda não começou.

Foi a prefeitura que fez a mudança da família dela do Jardim Edite para o Real Parque, em 2005. Em 2010, quando a assistente social bateu a sua porta para dizer que aquela era uma área de risco, ela disse: "De novo, fia? Até quando vou ficar com vocês me mandando de um lado para o outro?" Em fevereiro, o caminhão da prefeitura levou seus pertences para a favela de Paraisópolis, onde Gilsicleide aluga atualmente um quarto e cozinha com o valor do aluguel social.

O périplo da família pelas favelas da Zona Sul, financiado pela prefeitura de São Paulo, é um espelho dos descaminhos da política de planejamento urbano da capital mais rica do país. A secretaria gasta, por mês, R$ 4,5 milhões com o aluguel para famílias que aguardam a construção de prédios. Existem, hoje, 15 mil famílias recebendo esse benefício na cidade. São Paulo tem 800 mil famílias morando em favelas e assentamentos precários, o equivalente a um terço da população da capital.

De acordo com Raquel Rolnik, a política habitacional levada a cabo pela prefeitura é "uma máquina de produzir novas precariedades". "São Paulo está vivendo em função do desenvolvimento", ela avalia. Megaeventos como a Copa do Mundo e grandes obras de infraestrutura, como o Rodoanel, são responsáveis por remoções e despejos realizados sem nenhum respeito. "Às vezes, as famílias acabam em bairros piores, a 30, 40 quilômetros de suas moradias originais, quando o correto é que a condição nova seja sempre melhor", critica.

Seguindo o rastro dessas grandes intervenções urbanas, é possível cravar no mapa da cidade onde estão os maiores conflitos por habitação. E, para Raquel, em grande parte dos casos, essas regiões coincidem com as áreas de maior valor no mercado imobiliário.

O caso do Jardim Edite é emblemático nesse sentido. A pressão da especulação imobiliária é uma das principais forças enfrentadas pelos moradores da área. Na esquina das avenidas Jornalista Roberto Marinho e Engenheiro Luís Carlos Berrini, centro financeiro da cidade, a favela era vizinha do hotel Hilton (onde ficou hospedado o ex-presidente norte-americano George W. Bush, em 2007) e da central de jornalismo da TV Globo.

Segundo a urbanista Mariana Fix, que acompanha o caso desde o início, o metro quadrado da região valia US$ 100 há 30 anos. Hoje, o valor chega a até US$ 4 mil. Em seu livro Parceiros da Exclusão, ela afirma que os investimentos na ponte estaiada Jornalista Octávio Frias de Oliveira (vista obrigatória a partir dos escombros dos barracos do Edite) e na retirada da favela seguem mais a lógica de estímulo ao mercado imobiliário do que uma real demanda da cidade de São Paulo.

Desde quando começou a negociar a saída dos moradores e a construção dos prédios no mesmo local, o líder da associação dos moradores, Gerôncio Henrique Neto, recebeu propostas de imobiliárias para que abrisse mão da militância pelo terreno. "Eu não quis nem ouvir o que tinham a oferecer. Meu compromisso é com os moradores", diz ele. Nas negociações com a prefeitura para a remoção, diferentes valores foram oferecidos. "Em 2001, era R$ 3 mil pelo barraco ou rua. Subiu para R$ 5 mil para quem quisesse voltar para seu estado de origem. Depois, ofereceram um apartamento na periferia ou R$ 8 mil. Eu não aceitei. A lei diz que temos direito a um apartamento no mesmo lugar onde moramos."

A briga dele, agora, é para garantir que o projeto não sofra alterações por causa da pressão imobiliária. No projeto original, havia dois terrenos. Em um deles, estão os prédios para moradia popular; no outro, uma área de lazer, uma escola e o posto de saúde. Recentemente, o projeto foi adaptado para caber em apenas um terreno, onde a área de lazer foi colocada no teto da escola e do posto de saúde. Segundo Gerôncio, a alteração foi feita sem um acordo prévio com os moradores. Elisabete admite que a mudança realmente ocorreu. "Outros proprietários desse segundo terreno ganharam o direito de receber pela desapropriação e isso encareceria muito os valores do projeto", ela explica.

O Real Parque fica a cerca de 1 quilômetro do Jardim Edite, só que do outro lado do Rio Pinheiros. Entre eles está a ponte Jornalista Octávio Frias de Oliveira, construída com o dinheiro da Operação Urbana Água Espraiada, a mesma que financia a urbanização do Jardim Edite. O projeto, que prevê construção de três prédios com 240 apartamentos, uma escola e um posto de saúde, custou R$ 43 milhões. A ponte custou R$ 260 milhões. Inaugurada em 2008, virou o novo cartão-postal da cidade e, de quebra, serve como cenário de fundo para os telejornais da TV Globo.

A ponte só não serve para o filho de Gilsicleide ir para a escola. Depois que a família fez a primeira mudança, o menino de 13 anos passou a fazer longas caminhadas para estudar, pois o colégio ficou do outro lado do rio. Embora cravada entre as duas favelas, a ponte foi feita apenas para carros e motos.

 Impedido de fazer o caminho reto de 1 quilômetro, ele tinha de voltar mais de 1 quilômetro até a ponte vizinha, atravessá-la, e caminhar a mesma distância do outro lado. Agora que a família está em Paraisópolis, são 8 quilômetros para chegar à escola. O jeito é passar por baixo da catraca do ônibus.

Em 2010, se o problema já parecia distante de qualquer solução definitiva, um fator veio literalmente incinerar a possibilidade de diálogo. Enquanto em 2008 e 2009 o número de ocorrências de incêndios em favelas era inferior a 80, de janeiro a setembro do ano passado, a cifra pulou para 95. E, em 2011, o corpo de bombeiros já registra 99 casos. Muitos acontecem em áreas que passam por litígio ou urbanização.

A remoção dos moradores do Real Parque foi precipitada pelo fogo que queimou 354 casas em setembro passado. Os focos se alastraram pela área onde já havia negociação para remoção dos moradores. "Essa é a história do Real Parque", diz um mestre de obras que mora no local há mais de 30 anos e não quis se identificar. "Aqui tem projeto de urbanização desde 86, mas eles só conseguem tirar os moradores depois que acontece um incêndio." O primeiro foi logo antes do então prefeito, Paulo Maluf, começar a construir os prédios do Projeto Cingapura, em 1992. "Foi uma boa ajuda para convencer o pessoal que não estava querendo sair, né?"

Depois, em 2007, outro incêndio ocorreu em um terreno que estava em litígio com o proprietário. As pessoas que perderam suas casas foram para um alojamento provisório. O mesmo lugar em que, depois de tentativas de negociar a saída dos moradores, houve o incêndio de setembro do ano passado.

"Ninguém pode provar nada. Mas quem está aqui há muitos anos, como eu, desconfia."

O modo como o fogo começou e foi combatido levantou ainda mais suspeitas. O primeiro foco foi de madrugada e os próprios moradores o controlaram. Às 9h20, o fogo voltou, em um ponto distante do inicial. "Foi criminoso, temos certeza", diz uma moradora que perdeu a casa. Ela afirma que os bombeiros demoraram mais de uma hora para comparecer e, quando chegaram, estavam com pouca água. Outros moradores relatam que as mangueiras estavam furadas e as pessoas tiveram de trazer roupas para tentar conter os vazamentos. Alguns dizem ainda que os bombeiros não tentaram conter o fogo, apenas controlaram para que ele não se alastrasse além daquela área. O corpo de bombeiros não respondeu ao pedido de entrevista.

Na noite do incêndio, os moradores não tinham onde ficar. Alguns conseguiram pouso nas casas de parentes e vizinhos. Para os que ficaram na rua, o socorro veio do tráfico. Foram os gerentes do tráfico de drogas local que deram a ordem: os moradores com garagem em casa deveriam tirar os carros para receber as famílias desabrigadas. Por duas semanas, o tráfico distribuiu comida em quentinhas para as famílias desabrigadas e leite achocolatado para as crianças.

Mas, algumas semanas depois, veio a conta. Ao perceber que a devastação do fogo serviria para a prefeitura começar as obras de urbanização, o tráfico começou a fazer ameaças. Eles seriam contra a construção dos prédios, pois, com a regularização das ruas e a entrada de funcionários públicos e polícia, poderiam perder o ponto com localização privilegiada. Espalhou-se a ameaça de que as famílias que pegassem o aluguel teriam o mesmo destino de uma jovem dependente de crack que tentara roubar algumas casas durante o incêndio - ela foi espancada até a morte. A ameaça se estendeu aos líderes locais que negociavam o projeto de urbanização com a prefeitura. O resultado foi o esvaziamento do conselho que representa a comunidade nas reuniões com a Secretaria de Habitação.

Apesar de não reconhecer o aumento de casos de incêndio em assentamentos precários, a prefeitura determinou a criação da Câmara Executiva de Prevenção e Combate a Incêndios em Favelas, justamente para evitar que o problema se alastre. A iniciativa será desenvolvida em 50 comunidades e envolverá 21 subprefeituras.

Em um domingo ensolarado de abril, na região sudeste da capital, dezenas de moradores se reuniram na favela da Paz, localizada nas imediações do Parque Bristol, próximo ao Jardim Zoológico. O tema da reunião era a nova pintura dos barracos ao longo da principal rua da comunidade. As fachadas da via pareciam obra de pichadores nada familiarizados com a evolução da arte urbana nos últimos anos. Em várias delas, lia-se a inscrição "AI", em spray preto sobre alvenaria, seguida de um número. Logo acima, a assinatura que delatava a autoria das pinturas: PMSP - Prefeitura Municipal de São Paulo. Foi assim, com pichações sem qualquer aviso prévio, que os moradores da área souberam que suas casas seriam derrubadas. "AI" significa Auto de Interdição. E os pichadores eram funcionários da própria prefeitura.

Rumores sobre a chegada daquele dia pairavam sobre a comunidade havia anos. Neuza Leocádia estava em casa quando ele bateu à sua porta. Junto com a nova fachada, ela recebeu os documentos referentes à interdição de sua residência e um chamado para comparecer à Secretaria. "Eu estava quieta, mas vieram pichar meu barraco...", diz ela. Agora, vai ser difícil que ela volte a ficar calada. Moradora da Vila da Paz desde 1991, ela integra o comitê da comunidade que dialogará com a prefeitura paulistana.

Neuza e vários líderes de movimentos de moradia coordenam o encontro na rua. Contando com um sistema de som, eles atraem os passantes e combinam a estratégia para lidar com a ameaça de remoção. A principal ação é negar qualquer oferta de dinheiro por parte das autoridades. Quando alguns moradores disseram ter recebido R$ 1.200, a multidão exclamou em coro: "Devolve! Devolve o cheque-despejo!".

O motivo alegado pela prefeitura para a derrubada das casas é o fato de elas terem sido incluídas num mapeamento de áreas de risco feito em 2010, em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas. O órgão identificou 407 regiões da cidade ameaçadas por deslizamentos ou enchentes. E a Zona Sul lidera o ranking, com 176 comunidades na lista. Alguns moradores não reconhecem a ameaça. "Isso aqui não é área de risco. Eu pago água, luz e telefone. Minha casa nunca encheu", diz um deles. Neuza, que mora ao lado de um córrego, reconhece que, quando chove forte, a água sobe bastante. A discordância dela tem muito mais a ver com a questionável estratégia da prefeitura na abordagem do problema.

Para Dito Barbosa, líder da União dos Movimentos de Moradia, o que está ocorrendo pode ser definido como bullying social. "Estão criminalizando a pobreza", afirma. "Até o laudo do IPT, tudo foi feito de forma legal. Mas, daí pra frente, é tudo ilegal, as pichações, a intimidação... Se existe risco, qual o plano de reassentamento? Não se pode aproveitar essa situação pra fazer limpeza social."

Segundo Barbosa, a falta de transparência e debate tem a ver com o que ele chama de "militarização das subprefeituras". "A maioria desses órgãos é controlada por coronéis de postura extremamente conservadora. Essa é a coisa mais grave da repressão aos movimentos sociais", diz.

E alfineta: "Se a prefeitura defende o programa Cidade Limpa, por que picha a casa das pessoas?"


Antes da Reforma Pereira Passos (1902 a 1906), Rio de Janeiro era conhecido como "Porto sujo" e "cidade da morte"

Mauro de Bias
14/1/2013

revista de historia

Hoje o Rio de Janeiro é famoso pela bela alcunha de “Cidade Maravilhosa”, mas seu passado esconde apelidos muito menos lisonjeiros. "Porto sujo" e "cidade da morte" eram os nomes que os estrangeiros usavam para se referir à capital fluminense antes da Reforma Pereira Passos. Muitos navios passaram a evitar a Baía de Guanabara por medo. Em um episódio dramático, em 1895, 333 marinheiros do navio italiano Lombardia, que tinha 340 tripulantes, contraíram febre amarela, e 234 morreram.

As condições insalubres do Centro causavam milhares de mortes anualmente. Até a peste negra assustava no final do século XIX e começo do XX. A historiadora Eneida Queiroz, pesquisadora do período, conta que, além da peste, febre amarela, varíola, sarampo, disenteria, difteria e tuberculose eram também doenças comuns naquela época.

O governo tinha os motivos perfeitos para promover as reformas. A população da cidade crescia muito (95,8% de 1872 a 1890 e 56,3% de 1890 a 1906) devido à onda de imigração europeia e à migração de escravos recém-libertos das fazendas. A ocupação urbana acontecia de maneira desordenada, criando condições ideais para a propagação de doenças. Com mais pessoas disputando o Centro, fez-se a especulação imobiliária. Esse foi o cenário das mudanças de Pereira Passos.

Cortiços insalubres eram ambientes de proliferação de doenças no Rio de Janeiro

Começou então o famoso “bota abaixo”, com a demolição das casas e expulsão dos pobres para o subúrbio. “O problema é que essa população morava perto do trabalho. Se ela sai do Centro, fica longe. Como só a parte plana era valorizada, muita gente subiu os morros, porque assim continuava no Centro”, explica Queiroz. Foi o boom inicial das favelas do Rio.


Não se pode negar, porém, que a reforma Pereira Passos e o trabalho de Oswaldo Cruz foram eficientes na eliminação das doenças. No auge da epidemia de febre amarela, em 1894, 4.852 pessoas perderam a vida. Dez anos depois, ainda no meio do mandato do prefeito, foram 48 mortes. O número chegou a apenas quatro registros em 1908, conforme dados publicados pelo próprio Oswaldo Cruz no jornal The Times, em 1909.
“Era um discurso de sanitarismo. E a prefeitura foi incisiva. O governo caía em cima da população considerada indesejada. As doenças acabaram sim, mas não foi só pela reforma. A vacinação também ajudou bastante”, conta Queiroz. Ao menos, o Rio de Janeiro, que naquele tempo já era a imagem do Brasil no mundo, mudou sua fama. De “cidade da morte” para “Cidade Maravilhosa” já foi um grande passo.

Saia do morro hoje

Projeto de habitação e reformas da prefeitura do Rio de Janeiro trazem de volta experiências históricas de desapropriações em áreas mais carentes da cidade Mauro de Bias

revista de historia 

 
 A sigla de Secretaria Municipal de Habitação virou Saia do Morro Hoje


“Ponha-se na rua.” A frase ficou famosa no Rio de Janeiro de 1808. Sua origem remonta às iniciais “P.R.” pintadas nas portas das casas nos dias seguintes à chegada da Família Real à cidade. A sigla significava “Príncipe Regente”, mas a criatividade carioca fez questão de transformá-la.

Na época, membros da Corte escolhiam as melhores residências para morar, já que chegaram ao Brasil sem local para abrigar-se. Os (des)agraciados com tal pintura tinham 72 horas para abandonar suas moradias com mobília e escravos dentro, para que os nobres pudessem usufruir dos bens. Não havia pagamento de aluguel ou indenização.

Passaram-se mais de 200 anos desde as desapropriações. Mas a História, essa senhora irônica, faz questão de nos lembrar desse episódio, hoje, em 2013. Isso porque no alto do Morro da Providência - a primeira favela do Rio de Janeiro - a Secretaria municipal de Habitação (SMH) marcou casas que serão demolidas para realização de obras do programa Morar Carioca, que se propõem a melhorar a urbe. As portas de várias residências estão pintadas com “SMH” e um número de quatro algarismos. Mesmo que esteja prometida a criação na área de uma praça que, associada a mirantes no entorno, deverá ter um grande potencial turístico, o carioca, novamente, não perdeu tempo em criar sua própria frase para a sigla: “Saia do morro hoje”.

O momento atual vivido pela comunidade da Providência remete ainda a outro, ocorrido há pouco mais de cem anos, mas em escala mais significativa. O prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913), que governou o Rio de 1902 a 1906, promoveu em seu mandato a maior reforma urbana já vista na cidade, demolindo cerca de 1.600 residências e desabrigando aproximadamente 20 mil pessoas na região central para abrir avenidas e fazer obras sanitárias.

Desta vez, ao menos, a prefeitura investiu em não afastar a população do morro. No entorno da favela estão em construção três condomínios do ‘Minha Casa, Minha Vida’ que servirão para reassentar as 671 famílias removidas (um total de 4889 pessoas). A SMH informou ainda que, deste número, 196 famílias já aceitaram a realocação.

O líder comunitário Maurício Hora, de 44 anos, que coordena o Centro Cultural Casa Amarela e promove oficinas de arte para os adolescentes da favela, porém, queria que ninguém precisasse sair do morro. Morador da Providência desde que nasceu, o fotógrafo se diz preocupado com a vontade do governo de reassentar moradores em outros locais. “Por que não tem um projeto habitacional aqui? Não existe nenhuma obra de habitação aqui, só remoção”, diz.  

 
Reforma Pereira Passos abriu espaços e avenidas largas na cidade

 
O maior problema, para Hora, é a falta de diálogo da prefeitura com os moradores. “Fazer obras para construir um teleférico ou abrir ruas é bom. Ruas são mais interessantes que um teleférico, aliás. Mas tem que chamar a comunidade para participar. Eles planejaram e trouxeram pronto achando que aquela era a melhor forma de fazer, e não é assim”, reclama o morador.


A SMH rechaçou as reclamações de que não há diálogo com os moradores. “Desde o início das obras do Morar Carioca no Morro da Providência, foram realizadas quatro assembleias públicas com a presença do secretário municipal de Habitação (à época, Jorge Bittar). Além desses encontros, ocorreram cerca de 20 reuniões da equipe social do projeto com grupos menores para esclarecer as dúvidas dos moradores sobre a obra”, informou a Secretaria em nota.

O secretário municipal de Habitação, Pierre Batista, acrescenta que a abertura da região do alto do morro servirá para melhorar mobilidade e serviços na região, inclusive levando coleta de lixo, que é uma reivindicação dos moradores. “Em consequência disso, vai surgir turismo, que vai gerar movimento econômico na comunidade”, diz Batista, que faz questão de reiterar, no entanto, que a prioridade é a melhoria urbana, não o turismo.

Mas Maurício Hora e moradores reclamam que uma face ruim das reformas é perder o que o morro tem de mais essencial: a comunidade. “O grande problema não é perder as casas, é perder as pessoas. Eu quero que gente que mora em barraco melhore de vida, tenha casa melhor, mas não precisa sair do morro. Meu maior receio é perder a identidade cultural da favela”, afirma o líder comunitário.

A preocupação de Hora tem fundamento, de acordo com a historiadora Eneida Queiroz, que pesquisa exatamente a reforma realizada por Pereira Passos. “Até em áreas impróprias de favelas os preços [dos imóveis] têm aumentado. Nas pacificadas (caso da Providência), o valor das casas aumentou absurdamente. Então vai acontecer uma evasão. Quem for dono da própria casa poderá vender e sair ganhando, mas os que moram de aluguel vão sair. A única coisa certa é que o mercado imobiliário é sempre o que sai ganhando”, alfineta a pesquisadora.

Roberto Carlos da Silva, 41 anos, é nascido e criado na Providência e tem um bar no alto do morro, em um ponto nobre. Seu botequim fica a poucos metros de um mirante, de uma praça e da Capela do Cruzeiro (ora também chamada de Capela das Almas), a construção histórica que a prefeitura pretende valorizar abrindo espaços no entorno. É nessa vizinhança que as casas estão marcadas para demolição. Em frente ao bar, será feito ainda um anfiteatro. Carlinhos, como é conhecido na comunidade, tem medo de perder seus fregueses.

“Aqui tem uma visão panorâmica, dá para ver tudo. Maracanã, Engenhão, Baía de Guanabara, Pão de Açúcar. Mas aí veio o Favela-Bairro e tirou várias casas de fregueses meus daqui. Se tirarem as de quem ficou, vou vender para quem? Vou depender de gringo subir aqui?”, reclama.

Carlinhos se diz desconfiado das frequentes faltas de água e luz na favela

O comerciante acredita que, se o morador quiser impedir as reformas, será preciso união. “Tirar a gente é a vontade deles, mas não vamos dar mole, não. A população tem força, mas não se junta. Separados somos fracos, mas se a gente se juntar, não tem Eike Batista, não tem presidente Dilma, não tem presidente Lula, ninguém pode contra a gente”, avisa.

Perto do bar de Carlinhos, bem em frente à Capela do Cruzeiro, mora a diarista Marta Alexandre dos Santos, de 62 anos, outra insatisfeita com as reformas. Vinda da Paraíba, ela vive desde os 30 na Providência. A relação que ela tem com seus vizinhos é, literalmente, familiar. Sobrinhos, cunhados e primos moram no entorno.

“A prefeitura chegou tirando fotos, medindo, marcando e não falou mais nada. Só disseram que a gente ia sair, porque queriam fazer um ponto turístico aqui. Eu achei até que o teleférico fosse chegar aqui, mas não chega”, comenta dona Marta. Ela afirma ainda que considera errada a atitude da prefeitura. “Eu e meu falecido marido construímos nossa casa com tanto sacrifício. Até fome nós passamos, e agora querem tirar a gente daqui”, lamenta a moradora.

Ela diz que ouve bons comentários a respeito do condomínio construído em Triagem, bairro próximo ao Centro do Rio de Janeiro. Uma de suas vizinhas, deficiente física, aceitou a remoção e solicitou a opção da aquisição assistida (quando a SMH ajuda o morador a encontrar uma residência adequada). “Ela diz que o apartamento é pequeno, mas que é bom”, relata.

Amiga de dona Marta, a doméstica Ginilda Nogueira de Oliveira, 46 anos, nascida e criada na favela, não teve a casa marcada, mas teme ficar longe da vizinha. “Martinha não pode ir embora, não. Eu posso até sair e vir visitar todo dia, mas Martinha não pode sair do morro”, diz. Ela conclui dizendo que turistas e moradores não são incompatíveis. “É injusto tirar a gente daqui. Turista vem pela comunidade, não por outra coisa”, afirma.

Marta tem a casa marcada, Ginilda não. As amigas não querem se separar

 Maurício Hora reclama de um dos condomínios construídos perto do morro - o único que está com obras avançadas -, pela dificuldade de acesso - os prédios ficam muito longe da Central - e por causa de enchentes que costumam acontecer no entorno.

Dona Francisca mora ao lado da Capela do Cruzeiro, 
construção histórica que a prefeitura quer isolar

Outra pessoa muito insatisfeita com a incerteza do futuro é Francisca da Silva Almeida, de 76 anos, moradora da favela há 41. Com sua porta marcada, ela se preocupa por não poder fazer obras. “A casa de todo mundo fica aqui se acabando. A gente não pode fazer nenhuma melhoria, porque tem medo de perder tudo depois”, diz. O secretário Pierre Batista se defende, afirmando, inclusive, que nem todas as remoções são por causa das obras. Pouco mais de 50% dos moradores, segundo Batista, serão reassentados por estarem alocados em áreas de risco, como é o caso dos que habitam na região da Pedra Lisa e dos que estão em imóveis condenados pela Defesa Civil.

 “Nós vamos tentar todas as formas de diálogo. O morador vai poder escolher se quer ir para um condomínio, receber indenização ou comprar outro imóvel com assistência da prefeitura, mas as obras vão ser feitas. Se o morador não quiser sair, vamos buscar as vias judiciais”, argumenta o secretário.

Enquanto a situação não se resolve, liminares vêm e vão, embargando e liberando as obras do programa da prefeitura. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro está engajada em impedir a retirada de moradores. Na ação mais recente, de meados de dezembro, a construção foi novamente liberada. O termo “remoção”, aliás, é evitado a todo custo pela Secretaria municipal de Habitação, que prefere chamar de “reassentamento”.

Antes do Natal, o prefeito Eduardo Paes inaugurou o teleférico, mas o transporte ficará em testes até abril deste ano. Só então será liberado para uso público. Os condomínios (com 855 moradias), teleférico e reassentamentos fazem parte do Programa Morar Carioca, que tem verba de R$ 163 milhões. Deste montante, R$ 75 milhões foram o custo do transporte por cabos.


Ainda segundo a SMH, desde abril de 2011, existe um plantão social que funciona de segunda a sexta-feira, das 9 às 17h, na Rua da Gamboa s/nº, para atender e esclarecer as dúvidas de toda a comunidade. As obras também despertam controvérsias nos bancos universitários. Marcelo Burgos, professor de Sociologia da PUC-Rio, participou das discussões iniciais do Morar Carioca no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e aponta três vertentes que ele considera
positivas no programa. “Ele ultrapassou a lógica micro do Favela-Bairro, permitindo a criação de equipamentos mais abrangentes de desenvolvimento urbano”, comenta.

O segundo avanço do projeto, segundo Burgos, é a possibilidade de intervir na moradia das pessoas, para que, além de um exterior digno, as residências tenham também a parte interna mais habitável. “O poder público deve melhorar as ruas, mas por que não melhorar também as habitações? Morar é mais do que a rua, mais do que o saneamento, é a própria casa”, afirma o pesquisador.

No entanto, ele avalia que esse ponto não foi levado adiante no programa. “O documento final do Morar Carioca é muito superficial. É pouco esquematizado. A sensação é de que o governo propositalmente deixou em aberto para que desse uma margem de manobra muito grande de como usar essas intervenções urbanas”, critica o especialista.

Todavia, o avanço mais importante do Morar Carioca, na opinião de Burgos, é
exatamente o desadensamento das regiões sem remoções indiscriminadas. “Permite intervenções que podem ser muito boas, como foi feito pelo Programa de Aceleração do Crescimento na Rua 4, na Rocinha, que tinha o maior índice de tuberculose do Brasil. Agora mudou da água para o vinho a qualidade de vida dos moradores”, comenta o sociólogo.

Levar obras urbanas para favelas implica em remoções e demolições, devido à crônica falta de espaço das comunidades. O que acontece hoje no morro da Providência é uma experiência que pode ser repetida em outras comunidades, segundo a SMH. Se o trabalho vai trazer resultados bons ou ruins para os moradores, é preciso esperar para ver.

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