Revista Época
12/01/2006
Dissidentes brasileiros travam uma guerra contra a poderosa prelazia do papa e revelam segredos até então bem guardados
Eliane Brum e Débora Rubin
Quando era do Opus Dei, Antonio Carlos Brolezzi foi obrigado a usar
um macacão antimasturbação. O equipamento se destinava a combater a
'doença' que seu confessor diagnosticou como 'erotismo mental'.
Tratava-se de uma calça jeans e uma camisa de flanela costuradas uma na
outra e vestidas de trás para a frente com o objetivo de impedir o jovem
de 20 anos de alcançar a parte mais íntima de sua anatomia. Brolezzi,
hoje um bem casado professor do Instituto de Matemática e Estatística da
Universidade de São Paulo, tem se dedicado a narrar em tom confessional
as lembranças sexuais de uma década dentro da poderosa prelazia do
papa.
O CORPO É O INIMIGO
Os numerários têm de usar o cilício duas horas por dia, no alto da coxa
(como mostra a imagem acima). A mortificação evoca o sofrimento de
Cristo na cruz. Disse o fundador da Obra: 'Trata o teu corpo com
caridade, mas não com mais caridade que a que se tem com um inimigo
traidor'
Pela primeira vez no Brasil, dissidentes retiram o manto de silêncio
que envolve a 'Obra de Deus' (em latim, Opus Dei)e dedicam-se hoje a
exibi-la em praça pública - alguns deles com uma sanha digna daquelas
ex-mulheres que, na recente crônica política do país, enlamearam a
imagem de figurões da República. Nada podia ser pior para uma
instituição que usa a discrição como estratégia. A vida íntima do Opus
Dei está sendo devassada. Dividido em duas partes - 'Memórias sexuais de
um Numerário' e 'Manual do Ex-Numerário Virgem' -, o livro de Brolezzi
deverá ser o próximo míssil editorial lançado contra a ultraconservadora
organização católica.
Os 'numerários' a que se refere o livro são a espinha dorsal da Obra:
os leigos celibatários que vivem nos centros da instituição e cumprem
um ritual diário de rezas e mortificações. Já os supernumerários podem
casar, ter filhos e patrimônio próprio. Na Espanha, onde o movimento foi
fundado em 1928, já existe uma espinhosa bibliografia com relatos de
ex-membros. No Brasil, porém, onde o Opus Dei só aportou no fim dos anos
50, a organização havia conseguido manter seus adeptos e suas práticas
em segredo, obediente ao figurino pregado pelo fundador, Josemaría
Escrivá de Balaguer (1902-1975). Em Caminho, o guia do Opus Dei, Escrivá
enfatiza: 'O desprezo e a perseguição são benditas provas de predileção
divina, mas não há prova e sinal de predileção mais belo do que este:
passar oculto'. Agora esse ideal tornou-se inalcançável também no maior
país católico do mundo.
A declaração de guerra, no fim de outubro, foi o lançamento do livro
Opus Dei - Os Bastidores (Verus Editora), escrito por três dissidentes
da Obra. Um deles, Jean Lauand, professor da Faculdade de Educação da
USP, havia vivido 35 anos como numerário. Lauand era uma das figuras
mais populares da ordem até abandoná-la, há dois anos. Conhece como
poucos sua atuação no Brasil. Ao deixá-la, tornou-se uma pedra no meio
do caminho da obra de Escrivá.
O segundo ataque foi lançado pela mãe de um numerário, Elizabeth
Silberstein. Usando o apelo de uma mãe em luta para resgatar o filho das
'garras da seita', ela escreveu e lançou em dezembro o livro Opus Dei -
A Falsa Obra de Deus - Alerta às Famílias Católicas. A publicação,
bancada por ela, copia a estrutura de um manual para pais que tiveram
seus filhos seqüestrados pelas drogas. Ao Opus Dei é reservado o papel
de traficante. O quinto capítulo, por exemplo, é intitulado 'Alerta: meu
filho foi captado por eles! O que posso fazer?'.
As denúncias poderiam ser apenas uma daquelas constrangedoras brigas
de família se o Opus Dei não fosse a única prelazia pessoal do papa - e a
Igreja Católica a mais poderosa instituição religiosa do Ocidente.
Desde o lançamento em 2003 do best-seller de Dan Brown O Código Da Vinci
(mais de 40 milhões de exemplares vendidos), a Obra vive sob incômodos
holofotes. No enredo, a organização é capaz de cometer assassinatos para
impedir a revelação de verdades indesejáveis sobre Jesus. O fato de ser
uma história de ficção não impediu arranhões profundos na imagem do
Opus Dei. Para piorar, o filme baseado no livro estreará em maio, com
Tom Hanks no papel principal e vocação de blockbuster. O momento,
portanto, é propício para os membros da prelazia evocarem o ensinamento
do fundador: 'Não pretendas que te compreendam. Essa incompreensão é
providencial: para que o teu sacrifício passe despercebido'.
No Brasil, a reação dos dissidentes organizou-se a partir da criação
de um site na internet, o www.opuslivre.org - quartel-general virtual em
que ex-adeptos trocam confidências e dicas de 'sobrevivência'. Antonio
Carlos Brolezzi conta que quando recebeu o primeiro e-mail do site teve
uma tremedeira. 'Tive pesadelos e disse que não queria mais receber
aquele tipo de correspondência', conta. 'Responderam-me que tudo bem,
mas que havia chegado a hora de botar a boca no trombone e exorcizar os
fantasmas. Antes, quem saía da Obra ficava isolado. Com a internet as
pessoas passaram a conversar. Parei de tremer e decidi escrever o
livro.'
Numerários influentes, como o jornalista Carlos Alberto Di Franco,
enfrentam o fenômeno com o estoicismo pregado por Escrivá. 'A campanha
difamatória é dolorosa, mas ao mesmo tempo será boa para a Obra no
Brasil porque é o sinal da cruz de Cristo', afirma Di Franco. 'A
contradição, a calúnia e a difamação sempre tiveram um papel na história
da Igreja. Não há cristianismo sem cruz.'
Dom Geraldo Majella Agnelo, presidente da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil, disse a ÉPOCA que, se algum membro da prelazia
procurar a CNBB com denúncias de violação de direitos humanos, ele
encaminhará o assunto à Santa Sé. 'Como instituição, o Opus Dei foi
aprovado. Mas, se há erros, aí é diferente.
Eles devem ser apontados e
comprovados para ser julgados por autoridades competentes.' O escritório
de informação do Opus Dei no Brasil, em resposta por escrito, afirma
que a Obra já havia passado pela experiência de ser criticada por
ex-membros em outros países. 'Ainda que a imensa maioria dos que se
aproximam das atividades apostólicas e formativas do Opus Dei conserve
sempre um enorme carinho e agradecimento, não é de estranhar que ocorram
algumas exceções', diz João Gustavo Racca, do escritório brasileiro.
Erra quem vê o Opus Dei como um entre tantos movimentos católicos
conservadores, como Arautos do Evangelho, TFP e Focolare. Desde que João
Paulo II a ungiu com o status de prelazia pessoal, em 1982, a Obra
tornou-se oficialmente corpo e sangue da Igreja. Prevista pelo Concílio
Vaticano II (1962-1965) e incorporada pelo Código de Direito Canônico,
essa nova figura jurídica garantiu ao Opus Dei um duplo privilégio. Por
um lado, espalha-se pelo mundo sob o escudo da tradição milenar da
Igreja de Roma. Por outro, é independente dos bispos e dioceses. A Obra
só obedece ao prelado, cargo vitalício hoje ocupado por dom Javier
Echevarría. E ele só presta contas ao papa.
Dentro do Vaticano, o Opus Dei incomoda os cardeais mais
progressistas, que assistiram alarmados às demonstrações de entusiasmo
de João Paulo II. A canonização do fundador da Obra aconteceu em tempo
recorde para os padrões da Igreja, apenas 27 anos após sua morte. Bem
diferente, por exemplo, do caso de José de Anchieta, cuja patente de
santo é uma causa antiga dos brasileiros: o jesuíta morreu em 1597, mas
só se tornou beato em 1980 e não há estimativa de quando possa virar
santo. Antes da canonização, Escrivá era uma figura controversa.
Jesuítas espanhóis o acusavam de criar uma 'maçonaria dentro da igreja' e
até de promover 'uma nova heresia'.
Bento XVI é mais sóbrio na exposição de seus afetos que seu
antecessor, mas a obediência dos membros do Opus faz da instituição um
aliado valioso em um mundo onde a maioria dos fiéis prefere escolher as
próprias opiniões.
'Obedecei, como nas mãos do artista obedece um
instrumento
- que não se detém a considerar por que faz isto ou aquilo -
certo de que nunca vos mandarão coisa que não seja boa
e para toda a
Glória de Deus',
aconselha Escrivá.
Em Opus Dei - Um Olhar Objetivo para Além dos Mitos e da Realidade da
Mais Controversa Força da Igreja Católica, o jornalista especializado
em Vaticano John Allen Jr. compara a Obra a uma Guiness Extra Stout.
Como a tradicional cerveja irlandesa, em um mercado repleto de produtos
diet, light e até sem álcool, o Opus Dei é um reduto de tradição em meio
a um catolicismo que, desde o Concílio Vaticano II, tomou vários
atalhos em sua vivência cotidiana.
Seu livro, lançado no fim de 2005,
ainda sem tradução no Brasil, é o representante mais recente de uma
ampla bibliografia destinada a produzir um retrato do Opus Dei isento de
paixões. Como a cerveja preta e extra-forte, a organização sempre terá,
segundo o autor, um número fiel de seguidores para os quais representa
uma âncora irremovível num mundo movediço.
Quem pertence ao Opus Dei não tem dúvidas nem relativismos numa
sociedade povoada por ambos: pensa com a Igreja e vive como o papa
manda.
'A Igreja Católica não é uma democracia',
diz a numerária Maria
Lúcia Alckmin.
Para membros da Obra, parte significativa dos católicos
não passa de 'católicos de censo' - que servem para expandir as
estatísticas, mas seguem apenas as crenças pessoais. Em Caminho, Escrivá
demonstra desprezo com relação a essa humanidade supostamente sem
ideal: 'Que conversas! Que baixeza e que... nojo! - e tens de conviver
com eles, no escritório, na universidade, no consultório... no mundo'.
Com apenas 85 mil seguidores - 1.700 no Brasil -, o Opus Dei é
irrelevante do ponto de vista quantitativo. Mas seus admiradores são
estimados na casa dos milhões. Em 1950, num lance ousado, Escrivá
conseguiu inédita autorização do Vaticano para aceitar cooperadores
(leia-se financiadores) não-católicos e não-cristãos. Assim, a Obra tem
apoiadores espalhados pelo mundo das mais variadas doutrinas - inclusive
aqueles que nem sequer acreditam na existência de Deus. Além de
aumentar o poder de penetração do movimento nas diversas instâncias da
sociedade, os cooperadores representam uma boa fonte de recursos. O
vaticanista Allen estima o patrimônio da organização em US$ 2,8 bilhões -
pouco se comparado ao da Igreja nos Estados Unidos (US$ 102 bilhões),
muito se o parâmetro for a quantidade de membros.
Cada numerário é
obrigado a deixar salário e patrimônio para o Opus Dei.
'Quando
completei cinco anos na Obra, tive de lavrar um testamento deixando
minha herança para a instituição', conta o ex-numerário David Fernandes,
engenheiro do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). 'Quando saí,
não me devolveram nada, mas acredito que não tentem me tomar as coisas.
Se a Obra é tão boa, por que não há uma plaquinha na frente de cada
centro dizendo o que são?'
A grande força do Opus Dei é sua proposta de 'santificação no meio do mundo'. Escrivá construiu a biografia para
tornar-se 'o santo do cotidiano': 'elevar o mundo a Deus e transformá-lo
a partir de dentro'. Em lugar de padres e freiras confinados em
conventos ou dioceses, o exército de leigos da Obra vive em centros e
cumpre o celibato, mas atua em postos estratégicos na sociedade como
peças de uma engrenagem. Como diz Escrivá: 'Que preocupação há no mundo
por mudar de lugar! Que aconteceria se cada osso, se cada músculo do
corpo humano quisesse ocupar um posto diferente do que lhe compete? Não é
outra a razão do mal-estar no mundo. Persevera no teu lugar, meu filho;
daí, quanto poderás trabalhar pelo reinado efetivo do Senhor'.
O numerário começa por obedecer ao 'plano de vida espiritual' com uma
lista de obrigações diárias: duas orações mentais de meia hora, cinco
minutos de leitura do Evangelho e dez de leitura espiritual, reza do
terço, missa, comunhão seguida por dez minutos de ação de graças,
meditação dos mistérios do rosário, reza das preces da Obra, exames de
consciência particular e geral, reza de três ave-marias com os braços em
cruz pedindo a castidade antes de dormir, aspersão de água-benta na
cama para afastar as tentações do demônio. Uma vez por semana
encontra-se com o diretor espiritual para uma 'conversa fraterna'. Nela,
nada pode ser escondido. A etiqueta manda iniciar pelas revelações mais
vergonhosas, obedecendo ao princípio da 'sinceridade selvagem'. 'Além
de tudo isso, eu ainda ensinava na universidade. Voltava tarde e tinha
de preparar aulas. Comecei a apresentar sintomas psicológicos estranhos,
entrava em pânico', conta um engenheiro que deixou a Obra em novembro,
depois de 24 anos. 'Pensei que acabaria morrendo se continuasse ali.
Apavorado, fiz minhas malas e fui para um hotel.'
A liberdade religiosa, o direito de fazer o que bem entende com seu
corpo e a livre manifestação são valores indiscutíveis. Quem pertence ao
Opus Dei acredita que beijar o chão ao acordar e bradar 'Serviam' ('Eu
servirei', em latim), cumprir rotina rígida e obedecer sem duvidar são
um conforto e uma fonte de felicidade. Para os dissidentes, é lavagem
cerebral - uma estratégia que usa a fé e a Igreja Católica para
controlar e influenciar o mundo. São Escrivá teve o cuidado de reservar
um ensinamento para esse impasse: 'Isso - o teu ideal, a tua vocação -
é... uma loucura. E os outros - os teus amigos, os teus irmãos - uns
loucos... Não tens ouvido, por vezes, esse grito bem dentro de ti?
Responde, com decisão, que agradeces a Deus a honra de pertencer ao
'manicômio''.
#Q:Entrevista com Antonio Carlos Brolezzi, ex-numerário e autor de um livro com dicas para quem abandona a obra:#
Memórias sexuais
Ex-numerário escreve um livro com dicas para quem abandona a Obra e quer reabilitar o desejo
Dez anos depois de abandonar o Opus Dei, Antonio Carlos Brolezzi
escreve um livro em tom confessional sobre a Obra e o sexo. Dividido em
duas partes, a primeira vai se chamar 'Memórias Sexuais de um Numerário'
e a segunda 'Manual do Ex-Numerário Virgem'. Com 40 anos hoje, Brolezzi
só perdeu a virgindade aos 30. Professor do Instituto de Matemática e
Estatística da USP, casado pela segunda vez e pai de uma filha, ele
conta algumas de suas lembranças na seguinte entrevista.
ÉPOCA - Como entrou para o Opus Dei?
Antonio Carlos Brolezzi - Ninguém vai para o Opus conhecendo a
proposta, eles disfarçam. Me convidaram para um curso de Astronomia com
professores da USP. Achei estranho que não havia meninas, mas pensei que
elas não se interessavam pelo tema. Eu era office-boy, não me vestia
bem. Lá o pessoal se vestia bem, eu achava superchique. A gente tem
vontade de se aproximar porque são pessoas que parecem os elfos do
Senhor dos Anéis, seres meio distantes mas ao mesmo tempo admiráveis.
Imagine que eu pensava que aqueles caras tinham namoradas sensacionais,
superintelectuais também. Só depois, quando entramos, é que descobrimos
que é tudo montado. Quando eu entrei na USP para cursar Matemática
começaram a me ligar, não me deixavam em paz um segundo. Criaram uma
crise artificial de vocação. Vendem que somos especiais, que temos uma
luz na testa, e ficamos seduzidos. Passamos a ter acesso a uma porta
secreta, mostram uma sala onde só eles se reúnem.
Você passa a ter uma
vida secreta, não pode contar a sua família. Dá um passo aos 20 anos que
só você sabe. Fazendo uma analogia com Harry Potter, é como se o Opus
fosse o mundo dos magos e fora de lá o dos trouxas, que desconhecem a
magia.
ÉPOCA - Que memórias sexuais tem alguém que não podia nem sequer pensar em sexo?
Brolezzi - Eu acho muito interessante olhar para o Opus Dei sob o
ponto de vista da sexualidade. Quando eu fui para o centro tinha 19 anos
e nunca havia tido uma relação sexual. Foi chocante para mim quando
decidiram que eu não podia mais dar beijo no rosto de colega na
faculdade. Um dia uma colega veio me dar um beijo e eu virei a cara. Foi
o que o Opus chama de 'ato heróico', mas eu passei a noite chorando. A
idéia deles é que você ganha as batalhas fazendo pequenas coisas. Não é
'eu não vou transar', é 'eu não vou olhar'. Se tem uma revista de mulher
pelada numa banca, você precisa atravessar a rua. Uma vez eu vi uma
bunda numa revista e contei para o diretor. Ele falou: 'Essas revistas
pintam as fotos. Porque não é rosa, é marrom, marrom!'. Ele gritava,
acho que se referia ao ânus. Queria que eu visse sujeira nessas coisas.
Em 1991, vi uma folha rasgada na rua, com uma loira, de quatro, que dava
para ver a vagina por trás. Fiquei espantado. Esse negócio de não poder
olhar tem efeito contrário, isso aconteceu em 1991 e eu nunca esqueci.
No meu livro terá um capítulo chamado 'Como é a vagina'.
ÉPOCA - Como assim?
Brolezzi - Uma vez eu fiz um desenho de uma mulher nua num caderno e
fui me confessar. O confessor queria saber como eu desenhei se nunca
tinha visto. Eu disse que imaginei como se fosse uma boca, só que na
vertical. Ele riu, deu a entender que eu era um ignorante.
ÉPOCA - E como foi ver uma de verdade?
Brolezzi - Foi a primeira broxada. Tinha 30 anos, era virgem, tinha
acabado de sair da Obra e arrumado uma namorada. Fomos a um motel e ela
perguntou: 'Você tem camisinha?'. Eu disse que não, e ela falou para eu
pedir pelo telefone. Eu nem sabia o que era camisinha, imaginava que se
comprava numa casa escura, que precisava de uma senha. No centro, quando
falavam de sexo, falavam contra a camisinha. Pedi cinco, todo
constrangido. Ela ficou toda feliz, mas eu não usei nenhuma. O motel
tinha uma luz meio apagada, meio vermelha, aquilo soava como o antro do
demônio. Ela tirou a roupa, se deitou e eu imaginei que tinha de deitar
em cima dela, só que meu pênis estava murcho.
Me veio na mente a
maldição que eles me lançaram quando eu saí. Disseram que Deus tinha me
feito para ser solteiro, então eu podia não funcionar. Falaram que se eu
tivesse um filho ele poderia nascer deformado. Quando broxei, pensei
que eu era um cara estragado. Fiquei dez anos na Obra e passei dez anos
fora dela tendo tremedeira e uma sensação de terror cada vez que ouvia
ou lia o nome Opus Dei. Só quando conheci Viviane e nasceu minha filha,
Alice, é que consegui superar.
ÉPOCA - Como conseguiu transar, afinal?
Brolezzi - Vou até dar umas dicas no livro para quem sai da Obra.
Você precisa ter amizade com o sexo feminino, primeiro. Conversar,
dançar, para quebrar o esquemão de numerário, de não poder olhar para
mulher. Ir sentindo que a mulher não é um dragão.
ÉPOCA - Você chegou a vestir um macacão antimasturbação para que não se tocasse. Tinha muita culpa de se masturbar?
Brolezzi - Quem se masturba não pode nem comungar. Por isso, nos
últimos minutos de oração, o padre se recolhe na sacristia. Se você se
masturbou à noite, vai lá e se confessa. Nos centros grandes a fila era
enorme nessa hora, afinal, um monte de moleques de 20 anos. Eu dormia
rezando o terço para não ter tentação. Os devotos que me desculpem, mas
muitas vezes acordava com ele enrolado no pênis.
ÉPOCA - Por que chegou a hora de exorcizar os fantasmas escrevendo um livro?
Brolezzi - Quero falar com naturalidade sobre tudo isso. Você
mortifica os cinco sentidos, precisa combater cada um deles. Se você
gosta de olhar para uma janela, decide que não vai olhar. Se gosta de
sal, passa a comer sem sal. Faz coisas como não encostar na cadeira, não
ouvir mais música. Somos treinados a imaginar que o cheiro do sexo é
ruim. Por isso quero escrever, porque para mim foi problemático fazer
essa desprogramação. Quero falar no livro sobre casamento, porque
nós
tínhamos palestras em que o padre nos falava que os supernumerários
(membros casados do Opus Dei) reclamavam que a mulher cheirava a alho e a
fritura, que tinham de tomar banho de novo, que era chato e
desgastante. É como explicar a normalidade para uma pessoa que achou que
a normalidade era anormal. Quem sai tem de entender que quando você
casa às vezes você briga e sua mulher não precisa ser santa, que não dá
para fazer a 'correção fraterna' (quando um numerário chama a atenção do
outro por pequenos erros cometidos) na sua mulher. No começo do meu
casamento eu fiquei superneurótico com esse negócio das toalhas, por
exemplo. Achava que tinha de ter lugar certo, corrigia minha mulher.
Eles também sempre ridicularizavam quem tinha filho, que filho chorava,
tinha doença. Quando saí, disseram que eu só arrumaria uma bruxa para
casar.
ÉPOCA - Qual vai ser o último capítulo?
Brolezzi - Sobre o sentido da vida. Quero dizer que ninguém sabe
qual é o sentido e é preciso se acostumar com isso. O sentido da vida
não está escondido com algumas pessoas, é você quem vai dar. Para mim, é
ficar com a minha mulher, olhando revista e planejando a casa que a
gente vai construir. O que importa é tomar sua história nas mãos e ter a
memória apaziguada.
#Q:Pais versus filho numerário:#
'Roubaram meu filho'
Mãe de numerário, Elizabeth Silberstein lançou um manual de alerta às famílias católicas contra 'a falsa obra de Deus'
'Meu filho tinha 14 para 15 anos quando foi a um centro cultural do
Opus Dei para fazer um curso de Redação. Foi convidado por um amigo do
colégio. Apitou (tornou-se oficialmente numerário da Obra) aos 24 anos.
Tinha acabado de levar o fora de uma namorada. O pessoal do Opus ligava
15 vezes por dia para a nossa casa. Pensei que eram amigos bacanas
preocupados com o sofrimento dele. Quando falou que havia se tornado
numerário, começou a chorar muito, e eu lhe perguntei por que não tinha
nos contado antes. Ele disse que nós não entenderíamos. Essa é uma das
frases-chave que eles põem na cabeça dos meninos. Para eles, os pais são
os demônios que querem tirar a vocação. Em qualquer ordem da Igreja
Católica, os seminaristas passam por vários testes para ter certeza da
vocação. No Opus, ela é imposta. Eu propus ao diretor que meu filho
passasse um ano de experiência, sem abandonar as atividades normais. Ele
respondeu que eu tinha toda a razão e imediatamente o mandou para um
retiro. Depois disse que lá não havia telefone. Eu e o pai dele fomos à
polícia, descobrimos o telefone e chegamos ao retiro. Depois o diretor
do centro ligou pedindo desculpas por ter mentido que não havia telefone
onde meu filho estava. Quando entendi o que era ser numerário do Opus,
chorei cinco anos sem parar. Tive o diagnóstico de depressão
pós-traumática. Faz quatro meses que levantei. Aí disse: 'Chega'. E
resolvi escrever o livro. Se eu evitar que uma única família passe pelo
que passamos, já valeu a pena. A gente se prepara para não perder os
filhos para as drogas e para a violência. Ninguém se preocupa em perder o
filho para a religião.'
'Meus pais precisam rezar'
O numerário Augusto Silberstein diz que a família tem ciúme da Obra e frustração porque ele entregou a vida a Deus
Aos 29 anos, no Opus Dei há cinco, Augusto Silberstein faz
pós-graduação em Administração e é subdiretor de um centro no Rio. Deu a
seguinte entrevista a ÉPOCA.
ÉPOCA - Você acha que seus pais estão errados ao criticar a Obra?
Augusto Silberstein - Meus pais têm uma apreciação errada da
realidade por causa da paixão. É como usar óculos escuros. Se você põe
um, tudo o que enxerga é escurecido. Eles têm de tirar os óculos para
enxergar o lado bom da Obra, que é uma instituição maravilhosa. Me
incomoda quando apresentam o Opus Dei assim porque parece que eu sou um
fanático. Mas amo meus pais de coração. Acho que, como eu, meus pais têm
de rezar.
ÉPOCA - Mas por que você acha que eles enxergam dessa maneira?
Silberstein - Ciúme é uma das paixões. Imagine que você gosta muito
de uma pessoa e se casa com ela. Aí entra a sogra. Ela vê que o filho
está apaixonado, que uma pessoa está roubando o filho dela. Mas não é
verdade. Também há uma certa frustração por eu não ter seguido o script
que eles queriam. No meu caso, resolvi entregar minha vida a Deus.
ÉPOCA - Como você lida com o cilício?
Silberstein - O cilício aparentemente choca, parece absurdo,
medieval. Mas o Opus aproveita uma série de coisas antigas numa
realidade nova. Acho que as pessoas não se escandalizam por causa da
dor, porque hoje elas se submetem a coisas que provocam dor e que são
desagradáveis só para ficar bonitas. O que escandaliza as pessoas é
fazer algo desagradável por Deus.
ÉPOCA - Como é seu cotidiano? Com relação a livros e filmes, por exemplo?
Silberstein - Como qualquer pai de família preocupado com a
formação, a Obra tem de se preocupar com que não entre bobagem na cabeça
dos filhos. Um numerário não pode ir ao cinema, mas não quer dizer que
cinema seja bobagem. A gente assiste a filmes nos centros.
ÉPOCA - Qual foi o último filme que viu?
Silberstein - Batman! É ótimo.
ÉPOCA - E livros?
Silberstein - Livro que fala mal da Igreja, que te deixa deprimido, não pode. Nos centros há bibliotecas com bons livros.
ÉPOCA - O que está fora não é aconselhável?
Silberstein - Exatamente.
ÉPOCA - Quais os autores que você sabe que não são bem vistos?
Silberstein - (José) Saramago, por exemplo. Por que você vai ler uma coisa que fala mal do que você ama?
Os anos sombrios
Depois de mais de uma década na Obra, Thelma Pavesi luta para amarrar os pedaços da vida que deixou para trás
'Eu era uma das melhores da turma no curso de Química, da Unicamp.
Namorava há sete anos, pretendia me formar e casar. Fui convidada por
uma colega para assistir aulas de doutrina católica. Fui apenas para ser
simpática. E continuei freqüentando por causa da insistência da moça
que me 'tratava', é assim que eles dizem. Ela era responsável pela 'moça
de São Rafael'', como chamam a garota que tem chances de 'apitar',
entrar para a Obra. No caso, eu.
Essa pessoa faz um levantamento sobre a
sua vida, situação financeira, profissional, amorosa. Ela foi entrando
na minha intimidade até perguntar se eu era virgem. Se não fosse, seria
um critério para desistirem de mim. Para apitar, eles criam uma crise
vocacional. Dizem: 'Deus te chama. E chama só uma vez''.
Chegou a um
ponto em que eu não conseguia mais trabalhar, comer, dormir porque Deus
esperava a minha resposta. Fui instruída a desmanchar o namoro. Quando
finalmente apitei senti alívio porque fiz o que esperavam de mim. No dia
seguinte passei por um enorme arrependimento, mas já tinha dado a minha
palavra a Deus. Se desistir você é uma traidora, uma Judas, é inferno
certo.
Exerci lá dentro diversos cargos, comandei casa de retiro, tive
de deixar meu emprego de professora. Cuidei da parte financeira, embora
não faça a menor idéia de para onde vai o dinheiro. A TV ficava
chaveada. Fiz coisas como colar um vestido sobre as pernas da Ivete
Sangalo, no jornal, que era sempre censurado. Fui ensinada a olhar para
um homem como se fosse uma espiga de milho. Quando não suportei mais e
disse que queria ir embora, me ofereceram remédio. Já estava em uma casa
em que a maioria tomava medicamentos com tarja preta. Entrei em
depressão. Fiz tratamento. Quando melhorei, comecei a pensar em como
arranjar dinheiro para ir embora, já que meu cheque, cartão e passes
ficavam retidos pela Obra. Consegui um jeito de fazer caixa dois e
juntei um dinheirinho. Encontrei um quartinho para alugar e me mudei.
Saí há três anos, no dia da missa em homenagem ao fundador. A primeira
coisa que eu fiz foi ir ao cinema. Entrei num filme qualquer, nem me
lembro qual, mas adorei a sensação de liberdade. Eu tinha pedido no meu
aniversário para assistir ao filme 'Uma mente brilhante' (ganhador de
quatro Oscars) e não permitiram. Hoje tenho 39 anos, estou sem namorado,
sem emprego e lidando com o fato de talvez nunca ser mãe. Não vejo
esses 13 anos no Opus como algo que eu precisava passar, mas como uma
manipulação que não quero que se repita na minha vida.
Marcelo Rudini/ÉPOCA
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CONTROLE O professor Renato da Silva teve seus arquivos violados pelos superiores |
Invasão de privacidade
Renato da Silva foi expulso depois que o subdiretor violou seus arquivos e considerou um e-mail suspeito
'Entrei para a Obra em 1982, aos 17 anos. Estudava em uma escola
católica e vi um panfleto sobre orientação profissional. Fui, sem saber
que era do Opus Dei. Quando minha família soube, eu estava na Obra havia
três anos. Em 1989, fui enviado para o sul e consegui emprego em uma
universidade federal.
Professor universitário é uma posição estratégica e
eles não tinham ninguém lá. Sou doutor em Ciência da Computação pela
USP e sempre valorizei a Internet, mas notei que havia uma atitude
hostil a ela. Começaram a baixar normativas dizendo que só haveria um
computador por casa, que deveria ser desligado à noite e que ficaria em
local público. Fiz um dossiê de 82 páginas e encaminhei à comissão
regional questionando as regras. Jamais pensara em sair da Obra. Como
aprendi: ''Meu lugar é aqui, para o bem ou para o mal'. Mas em 2003 fui
ao Rio a trabalho. Quando voltei, o subdiretor me disse: 'Na sua
ausência, fiz uma coisa que não deveria ter feito, mexi nos seus
arquivos e achei um negócio que levei ao diretor'. O diretor falou:
'Isso é tão sério que eu encaminhei à comissão regional e eles decidiram
que é grave, você está confuso e não deve mais ficar aqui.' Perguntei o
que poderia ser. Não me disseram. Não sabia para onde ir, depois de 21
anos vivendo em um centro do Opus. Lembrei do Jean (Lauand, hoje também
dissidente), que era numerário mas morava sozinho. Passamos a noite em
claro conversando. Entrei em depressão e tive que fazer tratamento.
Hoje, aos 40 anos, concluí que você passa por um condicionamento muito
forte, baseado na culpa. Segundo os psicólogos, é lavagem cerebral. Só
depois descobri porque havia sido expulso. Era um e-mail, rascunho de um
texto com perguntas incômodas para o diretor espiritual. Eu mal tinha
lido, não tinha dado muita importância.'