sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A Ópus Dei na América Latina

4.03.2006

Por Henrique Júdice Magalhães

geosapiens 



Analisando a estrutura de classes dos países latino-americanos, Darcy Ribeiro identificava como segmento hegemónico dentro das classes dominantes o corpo de gerência das transnacionais. Ponta de lança do imperialismo, é ele quem dita ordens e impõe ideologias às demais fracções e, em muitos casos, organiza-as politicamente. A desnacionalização das economias latino-americanas na década de 90 agravou este quadro. 
 
A alteração de mais relevo no perfil da classe dominante verificada no bojo deste processo é o crescimento da influência da Opus Dei. Sustentada pelo capital espanhol, a organização controla jornais, universidades, tribunais e entidades de classe, sendo hoje peça chave para se compreender o processo político no continente, inclusive no Brasil, onde quer eleger Geraldo Alckmin presidente da República.

 
Procissão Católica na Espanha, berço da Opus Dei.

Mas o que é afinal, a Opus Dei (em latim, Obra de Deus)?
Em seu campo original de actuação, é a vanguarda das tendências mais conservadoras da Igreja Católica. "Este concílio, minhas filhas, é o concílio do diabo" teria dito seu fundador, Josemaria Escrivá de Balaguer, sobre o Vaticano II, no relato do jornalista argentino Emilio J. Corbiere no seu livro "Opus Dei. El totalitarismo católico".
 
Fundada na Espanha em 1928, a organização foi reconhecida pelo Vaticano em 1947. Em 1982, foi declarada uma prelatura pessoal, o que, sob o Direito canónico, significa que só presta contas ao papa e que seus membros não se submetem à jurisdição dos bispos. "A relação entre Karol Wojtyla e a Opus Dei" conta o teólogo espanhol Juan José Tamayo Acosta "atinge seu êxito nos anos 80-90, com a irresistível ascensão da Obra à cúpula do Vaticano, a partir de onde interveio altivamente, primeiro no esboço e depois na colocação em prática do processo de restauração da Igreja católica sob o protagonismo do papa e a orientação teológica do cardeal alemão Ratzinger."
 
Fontes ligadas à Igreja Católica atribuem o poder da Obra à quitação da dívida do Banco Ambrosiano, fraudulentamente falido em 1982.
 
Obscurantismo e misoginia são traços que marcam a organização. Exemplos podem ser encontrados nas denúncias de ex-adeptos como Jean Lauand, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – Universidade de São Paulo (USP), que recentemente escreveu junto com mais dois ex-membros, o juiz Márcio Fernandes e o médico Dário Fortes Ferreira, o livro "Opus Dei – os bastidores". Em entrevista ao programa Biblioteca Sonora, da Rádio USP, Jean Lauand conta que a Obra tem um "Index" de livros proibidos que abrange praticamente toda a filosofia ocidental desde Descartes. Noutra entrevista, à revista Época, Jean Lauand denuncia as estratégias de fanatização dos chamados numerários, leigos celibatários que vivem em casas da organização: "Os homens podem dormir em colchões normais, as mulheres têm de dormir em tábuas. São proibidas de segurar crianças no colo e de ir a casamentos". É obrigatório o uso de cinturões com pontas de ferro fortemente atados à coxa, como prática de mortificação que visa refrear o desejo. Mas os danos infligidos pelo fanatismo não se limitam ao corpo. 
 
No site que mantém com outros dissidentes (http://www.opuslivre.org/), Jean Lauand revela que a Obra conta com médicos especialmente encarregados de receitar psicotrópicos a numerários em crise nervosa.
 
A captação de numerários dá-se entre estudantes de universidades e escolas secundárias de elite. Centros de estudos e obras de caridade servem de fachada. A Opus Dei tem forte presença na USP, em especial na Faculdade de Direito, onde parte do corpo docente é composta por membros e simpatizantes, como o numerário Inácio Poveda e o director Eduardo Marchi. Outro expoente da organização na USP é Luiz Eugênio Garcez Leite, professor da Faculdade de Medicina e autor de panfletos contra a educação mista. A Obra actua também na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade de Campinas (Unicamp) e Universidade de Brasília (UnB).

 
Fazendo a América
Mas a Opus Dei é mais que um tema de saúde pública. Ela tem, desde a origem, uma clara dimensão política. Durante a ditadura de Franco, praticamente fundiu-se ao Estado espanhol, ao qual forneceu ministros e dirigentes de empresas e órgãos governamentais.No fim da década de 40, inicia sua expansão rumo à América Latina. Não foi difícil conquistar adeptos entre oligarquias como as da Cidade do México, Buenos Aires e Lima, que sempre buscaram diferenciar-se de seus povos apegando-se a um conceito conservador de pretensa hispanidade. Um dos elementos definidores desse conceito é exactamente o integralismo católico. 
 
Alberto Moncada, outro dissidente, conta em seu livro "La evolución del Opus Dei": "os jesuítas decidiram que seu papel na América Latina não deveria continuar sendo a educação dos filhos da burguesia, e então apareceu para a Opus Dei a ocasião de substituí-los – ocasião que não hesitou em aproveitar".
 
No Brasil, a organização deitou raízes em São Paulo no começo da década de 50, concentrando sua actuação no meio jurídico. O promotor aposentado e ex-deputado federal Hélio Bicudo conta que por duas vezes juízes tentaram cooptá-lo. Seu expoente de maior destaque foi José Geraldo Rodrigues Alckmin, nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) por Médici em 1972 e tio do actual governador de São Paulo. Acontece que nos anos 70, o poder da Opus Dei era embrionário. Tinha quadros em posições importantes, mas sem actuação coordenada. Além disso, dividia com a Tradição, Família e Propriedade (T.F.P.) as simpatias dos católicos de extrema-direita. 
 
Era natural, da mesma forma, que, alguns quadros dos regimes nascidos dos golpes de Estado de 1966 e 1976, na Argentina, e 1973, no Uruguai, fossem também quadros da Opus Dei. Mas segundo se lê no livro de Emilio J. Corbiere , sua actuação era ainda dispersa, o que não os impediu de controlar a Educação na Argentina durante o período Onganí (1966-70). 
 
Já no Chile, a Opus Dei foi para o pinochetismo o que havia sido para o franquismo na Espanha. O principal ideólogo do regime, Jaime Guzmá, era membro activo da organização, assim como centenas de quadros civis e militares. 
 
No México, a Obra conseguiu fazer Miguel de la Madrid presidente da República em 1982, iniciando a reversão da rígida separação entre Estado e Igreja imposta por Benito Juárez entre 1857 e 1861.
 

Internacional reaccionária
A Opus Dei não criou o reacionarismo católico, antes, teve nele sua base de cultura. Mas sistematizou-o doutrinariamente e organizou politicamente seus adeptos de uma forma quase militar. Hoje, funciona como uma espécie de Internacional reaccionária, congregando, coordenadamente, adeptos em todo o mundo. 
 
Concorrem para isto, nos anos 90, o ápice do poder da Obra no Vaticano e a invasão da América Latina por transnacionais espanholas. 
 
A Argentina entregou suas estatais de telefonia, petróleo, aviação e energia á Telefónica, Repsol, Iberia e Endesa, respectivamente. A Telefónica controla o sector também no Peru e em São Paulo. A Iberia já havia engolido a LAN, do Chile, onde a geração de energia também é controlada pela Endesa. Bancos espanhóis também chegaram ao continente neste processo. 
 
No Brasil, o Santander comprou o Banespa e o Meridional, enquanto que o BBVA recebeu os activos do Excel através do Proer, no governo de Fernando Henrique Cardoso. 
 
"A Opus Dei tem sido para o modelo neoliberal o que foram os dominicanos e franciscanos para as cruzadas e os jesuítas frente à Reforma de Lutero" compara José Steinsleger, colunista do diário mexicano "La Jornada".

A organização actua também no monopólio da imprensa. Controla o jornal "El Observador", de Montevidéu, e exerce influência sobre órgãos tradicionais da oligarquia como "El Mercurio", no Chile, "La Nación", na Argentina e "O Estado de São Paulo", no Brasil. O elo com a imprensa é o curso de pós-graduação em jornalismo da Universidade de Navarra em São Paulo, coordenado por Carlos Alberto di Franco, numerário e comentarista do "Estadão" e da Rádio Eldorado. O segundo homem da Opus Dei na imprensa brasileira é o também numerário Guilherme Doring Cunha Pereira, herdeiro do principal grupo de comunicação do Paraná ("Gazeta do Povo"). 
 
Os jornalistas Alberto Dines e Mário Augusto Jakobskind denunciam que a organização controla também a Sociedade Interamericana de Imprensa – SIP (na sigla em espanhol). 
 
Sedeada na Espanha, a Universidade de Navarra é a jóia da coroa da Opus Dei no negócio do ensino. Sua receita anual é de 240 milhões de euros. Além disso, a Obra controla as universidades Austral (Argentina), Montevideo (Uruguai), de Piura (Peru), de Los Andes (Chile), Pan Americana (México) e Católica André Bello (Venezuela)
 
Dentro da igreja católica, a Opus Dei emplacou, na última década, vários bispos e Cardeais na América Latina. O mais notável é Juan Luís Cipriani, de Lima, no Peru, amigo íntimo da ditadura de Alberto Fujimori. Em seu estudo "El totalitarismo católico em el Peru", o jornalista Herbert Mujica denuncia que quando o Movimento Revolucionário Tupac Amaru tomou a embaixada do Japão, em 1997, Juan Luís Cipriani, valendo-se da condição de mediador do conflito, instalou equipamentos de escuta que possibilitaram à polícia invadir a casa e matar os ocupantes. 
 
Na Venezuela, a Obra teve papel essencial no fracassado golpe de 2002 contra Hugo Chávez. Um dos articuladores da tentativa foi José Rodríguez Iturbe, nomeado ministro das Relações Exteriores. Também participou da articulação à embaixada da Espanha, governada na época pelo neo-franquista Partido Popular (PP)
 
Após os reveses na Venezuela, as esperanças da Opus Dei voltaram-se para Joaquím Laví, no Chile, e Geraldo Alckmin, no Brasil, hoje seus quadros políticos de maior destaque.  
 
Joaquím Laví foi derrotado nas últimas eleições presidenciais chilenas em Dezembro. Resta o Brasil, onde a Obra tenta fazer de Geraldo Alckmin presidente e formar um eixo geopolítico com os governos Álvaro Uribe (Colombia) e Vicente Fox (México), aos quais está intimamente associada.

 
Entranhas mafiosas

Além das dimensões religiosa e política, a Opus Dei tem uma terceira face: a de sociedade secreta de cunho mafioso. Em seus estatutos secretos, redigidos em 1950 e publicados em 1986 pelo jornal italiano "L´Expresso", a Obra determina que "os membros numerários e supernumerários saibam que devem observar sempre um prudente silêncio sobre os nomes dos outros associados e que não deverão revelar nunca a ninguém que eles próprios pertencem à Opus Dei.
 
Inimiga jurada da Maçonaria, ela copia sua estrutura fechada o que frequentemente serve para encobrir actos criminosos. 
 
Entre os católicos, a Opus Dei é conhecida como "Santa Máfia", Emilio J. Corbiere lembra os casos de fraude e remessa ilegal de divisas nas empresas espanholas Matesa e Rumasa, em 1969, onde parte dos activos desviados financiaram a Universidade de Navarra. Bancos espanhóis são suspeitos de lavagem de dinheiro do narcotráfico e da máfia russa. A Opus Dei também esteve envolvida nos episódios de falência fraudulenta dos bancos Comercial (Uruguai, pertencente à família Peirano, dona de "El Observador") e de Crédito Provincial (Argentina)
 
Na Argentina os responsáveis pelas desnacionalizações da petrolífera YPF e das Aerolineas Argentinas, compradas por empresas espanholas, em dois dos maiores escândalos de corrupção da história do país, tiveram sua impunidade assegurada pela Suprema Corte, onde pontificava António Boggiano, membro da Opus Dei. 
 
 
No Brasil, as pretensões de controlo sobre o Judiciário 
esbarram no poder dos Maçons. 
 
A Opus Dei controla, porém, o Tribunal de Justiça de São Paulo através da manipulação de promoções. Segundo fontes do meio jurídico paulista, de 25 a 40% dos juízes de primeira instância no estado pertencem à organização – proporção que se repete entre os promotores, no tribunal, a proporção sobe para 50 a 75%. 
 
Recentemente, o tribunal, em julgamento secreto, decidiu pelo arquivamento de denúncia contra Saulo Castro Abreu Filho, braço direito de Geraldo Alckmin, acusado de organizar grupos de extermínio desde a secretaria de Segurança, e contra dois juízes acusados de participação na montagem desses grupos. 
 
A fusão dos tribunais de Justiça e de Alçada, determinada pela Emenda Constitucional n.º 45, foi uma medida da equipe do ministro da Justiça, Mácio Thomaz Bastos, para reduzir o poder da Obra no judiciário paulista, cuja orientação excessivamente conservadora, principalmente em questões criminais e de família, é motivo de alarme entre profissionais da área jurídica.

Ligações poderosas - Opus Dei e Geraldo Alkimin




Revista Época - 12/01/2006

Carlos Alberto Di Franco dá formação cristã ao governador Geraldo Alckmin e treinou mais de 200 editores da imprensa

Carlos Alberto Di Franco, 60 anos, é um dos numerários mais influentes e bem relacionados do Opus Dei. Representante no Brasil da Escola de Comunicação da Universidade de Navarra e diretor do Master em Jornalismo, um programa de capacitação de editores que já formou mais de 200 cargos de chefias dos principais jornais do País, é citado no livro Opus Dei - Os Bastidores como o executor da política da Obra para a mídia do Brasil e na América Latina.

Nos últimos anos, tem feito periodicamente uma preleção sobre valores cristãos na ala residencial do Palácio dos Bandeirantes a convite do governador Geraldo Alckmin (confira matéria na página xx). O encontro, apelidado de 'Palestra do Morumbi', reúne um seleto grupo de empresários e profissionais do Direito, entre eles o vice-presidente da Fiesp, João Guilherme Ometo. Na sede do Master, em São Paulo, em cujos andares superiores funciona o centro da Obra onde vive, Di Franco deu a seguinte entrevista a Época.

ÉPOCA - A partir do final dos anos 80 a Universidade de Navarra, que é do Opus Dei, passou a dar cursos nas redações brasileiras. Como surgiu essa estratégia?
Carlos Alberto Di Franco
- Vários professores de lá participaram de um seminário no Rio e chamaram atenção pela sua visão de Jornalismo. Esse foi o início de um trabalho não de universidade, mas de consultoria de alguns profissionais que também são professores em Navarra. Mais recentemente Navarra montou uma empresa de consultoria que atualmente está sendo reestruturada, e eu tenho uma empresa e contrato consultores de Navarra e também daqui.

ÉPOCA - O Master em Jornalismo é uma estratégia do Opus Dei para influenciar a imprensa brasileira e da América latina?
Di Franco -
Absolutamente nada a ver. É um trabalho profissional meu. A única coincidência é que Carlos Alberto Di Franco é do Opus Dei. A imprensa tem suficiente discernimento e filtros próprios para se deixar submeter a qualquer coisa deste tipo.

ÉPOCA - O senhor é numerário do Opus Dei, é representante da Escola de Comunicação da Universidade de Navarra, que é do Opus Dei, o Master traz professores de Navarra que também são numerários, mas o senhor afirma que não há nenhuma estratégia do Opus Dei em influenciar a imprensa através de um curso de formação de editores?
Di Franco -
Muitos professores de Navarra que vêm não são do Opus Dei. O Master é um programa técnico de capacitação de editores e não de Religião. O Master tem uma identidade cristã? Claro. Quando eu abro o Master, a primeira coisa que eu faço é dizer que o centro conta com serviço de capelania entregue à prelazia do Opus Dei. Isso implica numa série de serviços de atendimento espiritual para quem queira recebê-los. Deixo absolutamente claro o que acontece aqui. O prestígio do Master não depende do número de gotas de água benta, mas de sua qualificação profissional.

ÉPOCA - Quantos professores tem o Master e, destes, quantos são do Opus Dei?
Di Franco -
Onze fixos, seis são da Obra.

ÉPOCA - São Escrivá disse que era preciso embrulhar o mundo em papel-jornal...
Di Franco -
Qualquer pessoa que pense dois minutos percebe que os meios de comunicação são um poderoso facho para o bem e para o mal. Essa preocupação de evangelização tendo em conta os meios de comunicação social é legítima. Mas você poderá difundir a mensagem cristã não com água benta e nem metendo-se a montar estruturas piegas, mas atuando na sua atividade profissional. Estou convicto de que se o mundo tiver mais cristãos ou gente comprometida com sua fé será um lugar melhor.

ÉPOCA - O senhor publicou um artigo no jornal O Estado de S.Paulo criticando o Código da Vinci, um livro de ficção que mostra o Opus Dei como uma seita capaz de assassinar para alcançar seus objetivos. O senhor assina como jornalista e professor de ética. O senhor não acha que deveria ter informado ao leitor que é um numerário?
Di Franco -
Não, porque não acrescenta nada. Na mídia todo mundo sabe.

ÉPOCA - O senhor acredita que todos os leitores do jornal sabem?
Di Franco -
Todos os leitores não, mas eu não sei o que ser membro do Opus Dei acrescenta ao meu currículo. O que eu fiz foi uma análise do Dan Brown mostrando a sua desonestidade intelectual que qualquer jornalista poderia fazer, budista ou ateu.

ÉPOCA - Poderia. Mas o senhor não acha que a informação de que quem criticava um livro contra o Opus Dei era alguém do Opus Dei teria sido relevante para o leitor?
Di Franco -
Eu fiz uma crítica técnica e não movida por razões religiosas.

ÉPOCA - Como começaram as 'palestras do Morumbi', que acontecem na última quarta-feira do mês, no Palácio, com o governador Geraldo Alckmin e um grupo de empresários e profissionais do Direito?
Di Franco -
Não é uma reunião regular, depende das agendas. O governador é cristão, muito católico. Nesta reunião tratamos temas relacionados a práticas ou virtudes cristãs.

ÉPOCA - De quem partiu essa idéia?
Di Franco -
Nasceu de uma conversa do governador com um sacerdote da Obra com quem ele tem direção espiritual periódica.

ÉPOCA - O Padre (José) Teixeira, confessor do governador?
Di Franco -
Isso, o Padre Teixeira. Aí eu e o governador conversamos sobre a melhor maneira de fazer e sobre quem participaria. O grupo é formado por amigos comuns, todos católicos. Eu sou o palestrante. Uma coisa rápida, meia-hora, um cafezinho. A última foi em agosto ou setembro. Depois teríamos outra, mas eu não pude. Agora ele entrou em campanha. Acredito que no final de janeiro combinaremos a próxima.

ÉPOCA - Essas palestras são pagas?
Di Franco -
Não é um trabalho profissional, é uma atividade de formação cristã.


ÉPOCA - O senhor não acha que a proibição de ir ao cinema, teatro ou estádio de futebol conflitua com seu trabalho de jornalista?
Di Franco -
Para mim nunca foi problema. Não é que não pode, a expressão está mal colocada. Não vai ao cinema porque não quer ir ao cinema. Os numerários vivem, voluntariamente, uma série de abstenções em função de sua entrega como numerários.

ÉPOCA - Como o senhor faz com o cilício?
Di Franco -
O cilício é uma mortificação corporal ultratradicional na Igreja. Se você falar com qualquer pessoa que viva o cristianismo é a coisa mais corriqueira e comum.

ÉPOCA - O senhor usa, duas horas por dia?
Di Franco -
Sim, como qualquer numerário.

ÉPOCA - Quando o senhor está com o cilício se concentra no sofrimento de Cristo?
Di Franco -
Essa pequena mortificação você oferece por várias intenções. A partir de hoje vou oferecer para você.

ÉPOCA - Não é necessário.
Di Franco -
Como colega. O incômodo se oferece.

ÉPOCA - É muito difícil o celibato?
 Di Franco - Qualquer pessoa tem desejo, é normal. Eu sinto atração pelas mulheres, claro que sinto, sobretudo pelas bonitas.

ÉPOCA - O senhor é virgem?
Di Franco -
Você está entrando em território perigoso. Mas sou, se quer saber sou.



A ESTRUTURA DA OBRA
A maioria dos membros são leigos. Eles se dividem nas seguintes categorias
Numerários: Membros celibatários que vivem em centros da Obra e cumprem um rígido programa diário de rezas e rituais. Comprometem-se com a probreza pessoal e a obediência irrestrita aos superiores. Os ganhos auferidos na atuação profissional são administrados pela instituição, assim como o patrimônio. Mulheres e homens vivem separados
Supernumerários: Podem casar e constituir família. Espera-se que tenham muitos filhos e os orientem para servir à Obra. Sua contribuição financeira deve ser equivalente aos gastos com mais um filho
Adscritos: Assumem as mesmas obrigações que um numerário, mas não vivem nos centros
Adjuntos: Numerários que ainda não vivem em casas da Obra, em geral com menos de 18 anos
Auxiliares: Numerárias que realizam as tarefas domésticas do centro. A maioria é recrutada na zona rural
Sacerdotes numerários: Aqueles que são ordenados padres
Cooperadores: Não são membros da Obra, mas colaboram financeiramente com ela. Podem ser não-cristãos e inclusive ateus

A vida íntima do Opus Dei

Revista Época

12/01/2006

Dissidentes brasileiros travam uma guerra contra a poderosa prelazia do papa e revelam segredos até então bem guardados 

Eliane Brum e Débora Rubin

Quando era do Opus Dei, Antonio Carlos Brolezzi foi obrigado a usar um macacão antimasturbação. O equipamento se destinava a combater a 'doença' que seu confessor diagnosticou como 'erotismo mental'. Tratava-se de uma calça jeans e uma camisa de flanela costuradas uma na outra e vestidas de trás para a frente com o objetivo de impedir o jovem de 20 anos de alcançar a parte mais íntima de sua anatomia. Brolezzi, hoje um bem casado professor do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo, tem se dedicado a narrar em tom confessional as lembranças sexuais de uma década dentro da poderosa prelazia do papa.

O CORPO É O INIMIGO
Os numerários têm de usar o cilício duas horas por dia, no alto da coxa (como mostra a imagem acima). A mortificação evoca o sofrimento de Cristo na cruz. Disse o fundador da Obra: 'Trata o teu corpo com caridade, mas não com mais caridade que a que se tem com um inimigo traidor'


Pela primeira vez no Brasil, dissidentes retiram o manto de silêncio que envolve a 'Obra de Deus' (em latim, Opus Dei)e dedicam-se hoje a exibi-la em praça pública - alguns deles com uma sanha digna daquelas ex-mulheres que, na recente crônica política do país, enlamearam a imagem de figurões da República. Nada podia ser pior para uma instituição que usa a discrição como estratégia. A vida íntima do Opus Dei está sendo devassada. Dividido em duas partes - 'Memórias sexuais de um Numerário' e 'Manual do Ex-Numerário Virgem' -, o livro de Brolezzi deverá ser o próximo míssil editorial lançado contra a ultraconservadora organização católica.

Os 'numerários' a que se refere o livro são a espinha dorsal da Obra: os leigos celibatários que vivem nos centros da instituição e cumprem um ritual diário de rezas e mortificações. Já os supernumerários podem casar, ter filhos e patrimônio próprio. Na Espanha, onde o movimento foi fundado em 1928, já existe uma espinhosa bibliografia com relatos de ex-membros. No Brasil, porém, onde o Opus Dei só aportou no fim dos anos 50, a organização havia conseguido manter seus adeptos e suas práticas em segredo, obediente ao figurino pregado pelo fundador, Josemaría Escrivá de Balaguer (1902-1975). Em Caminho, o guia do Opus Dei, Escrivá enfatiza: 'O desprezo e a perseguição são benditas provas de predileção divina, mas não há prova e sinal de predileção mais belo do que este: passar oculto'. Agora esse ideal tornou-se inalcançável também no maior país católico do mundo.


A declaração de guerra, no fim de outubro, foi o lançamento do livro Opus Dei - Os Bastidores (Verus Editora), escrito por três dissidentes da Obra. Um deles, Jean Lauand, professor da Faculdade de Educação da USP, havia vivido 35 anos como numerário. Lauand era uma das figuras mais populares da ordem até abandoná-la, há dois anos. Conhece como poucos sua atuação no Brasil. Ao deixá-la, tornou-se uma pedra no meio do caminho da obra de Escrivá.

O segundo ataque foi lançado pela mãe de um numerário, Elizabeth Silberstein. Usando o apelo de uma mãe em luta para resgatar o filho das 'garras da seita', ela escreveu e lançou em dezembro o livro Opus Dei - A Falsa Obra de Deus - Alerta às Famílias Católicas. A publicação, bancada por ela, copia a estrutura de um manual para pais que tiveram seus filhos seqüestrados pelas drogas. Ao Opus Dei é reservado o papel de traficante. O quinto capítulo, por exemplo, é intitulado 'Alerta: meu filho foi captado por eles! O que posso fazer?'.

As denúncias poderiam ser apenas uma daquelas constrangedoras brigas de família se o Opus Dei não fosse a única prelazia pessoal do papa - e a Igreja Católica a mais poderosa instituição religiosa do Ocidente. Desde o lançamento em 2003 do best-seller de Dan Brown O Código Da Vinci (mais de 40 milhões de exemplares vendidos), a Obra vive sob incômodos holofotes. No enredo, a organização é capaz de cometer assassinatos para impedir a revelação de verdades indesejáveis sobre Jesus. O fato de ser uma história de ficção não impediu arranhões profundos na imagem do Opus Dei. Para piorar, o filme baseado no livro estreará em maio, com Tom Hanks no papel principal e vocação de blockbuster. O momento, portanto, é propício para os membros da prelazia evocarem o ensinamento do fundador: 'Não pretendas que te compreendam. Essa incompreensão é providencial: para que o teu sacrifício passe despercebido'.


No Brasil, a reação dos dissidentes organizou-se a partir da criação de um site na internet, o www.opuslivre.org - quartel-general virtual em que ex-adeptos trocam confidências e dicas de 'sobrevivência'. Antonio Carlos Brolezzi conta que quando recebeu o primeiro e-mail do site teve uma tremedeira. 'Tive pesadelos e disse que não queria mais receber aquele tipo de correspondência', conta. 'Responderam-me que tudo bem, mas que havia chegado a hora de botar a boca no trombone e exorcizar os fantasmas. Antes, quem saía da Obra ficava isolado. Com a internet as pessoas passaram a conversar. Parei de tremer e decidi escrever o livro.'

Numerários influentes, como o jornalista Carlos Alberto Di Franco, enfrentam o fenômeno com o estoicismo pregado por Escrivá. 'A campanha difamatória é dolorosa, mas ao mesmo tempo será boa para a Obra no Brasil porque é o sinal da cruz de Cristo', afirma Di Franco. 'A contradição, a calúnia e a difamação sempre tiveram um papel na história da Igreja. Não há cristianismo sem cruz.'
Dom Geraldo Majella Agnelo, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, disse a ÉPOCA que, se algum membro da prelazia procurar a CNBB com denúncias de violação de direitos humanos, ele encaminhará o assunto à Santa Sé. 'Como instituição, o Opus Dei foi aprovado. Mas, se há erros, aí é diferente.

Eles devem ser apontados e comprovados para ser julgados por autoridades competentes.' O escritório de informação do Opus Dei no Brasil, em resposta por escrito, afirma que a Obra já havia passado pela experiência de ser criticada por ex-membros em outros países. 'Ainda que a imensa maioria dos que se aproximam das atividades apostólicas e formativas do Opus Dei conserve sempre um enorme carinho e agradecimento, não é de estranhar que ocorram algumas exceções', diz João Gustavo Racca, do escritório brasileiro.


Erra quem vê o Opus Dei como um entre tantos movimentos católicos conservadores, como Arautos do Evangelho, TFP e Focolare. Desde que João Paulo II a ungiu com o status de prelazia pessoal, em 1982, a Obra tornou-se oficialmente corpo e sangue da Igreja. Prevista pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) e incorporada pelo Código de Direito Canônico, essa nova figura jurídica garantiu ao Opus Dei um duplo privilégio. Por um lado, espalha-se pelo mundo sob o escudo da tradição milenar da Igreja de Roma. Por outro, é independente dos bispos e dioceses. A Obra só obedece ao prelado, cargo vitalício hoje ocupado por dom Javier Echevarría. E ele só presta contas ao papa.

Dentro do Vaticano, o Opus Dei incomoda os cardeais mais progressistas, que assistiram alarmados às demonstrações de entusiasmo de João Paulo II. A canonização do fundador da Obra aconteceu em tempo recorde para os padrões da Igreja, apenas 27 anos após sua morte. Bem diferente, por exemplo, do caso de José de Anchieta, cuja patente de santo é uma causa antiga dos brasileiros: o jesuíta morreu em 1597, mas só se tornou beato em 1980 e não há estimativa de quando possa virar santo. Antes da canonização, Escrivá era uma figura controversa. Jesuítas espanhóis o acusavam de criar uma 'maçonaria dentro da igreja' e até de promover 'uma nova heresia'.

Bento XVI é mais sóbrio na exposição de seus afetos que seu antecessor, mas a obediência dos membros do Opus faz da instituição um aliado valioso em um mundo onde a maioria dos fiéis prefere escolher as próprias opiniões.

'Obedecei, como nas mãos do artista obedece um instrumento 
- que não se detém a considerar por que faz isto ou aquilo - 
certo de que nunca vos mandarão coisa que não seja boa 
e para toda a Glória de Deus', 
aconselha Escrivá.


Em Opus Dei - Um Olhar Objetivo para Além dos Mitos e da Realidade da Mais Controversa Força da Igreja Católica, o jornalista especializado em Vaticano John Allen Jr. compara a Obra a uma Guiness Extra Stout. Como a tradicional cerveja irlandesa, em um mercado repleto de produtos diet, light e até sem álcool, o Opus Dei é um reduto de tradição em meio a um catolicismo que, desde o Concílio Vaticano II, tomou vários atalhos em sua vivência cotidiana.

Seu livro, lançado no fim de 2005, ainda sem tradução no Brasil, é o representante mais recente de uma ampla bibliografia destinada a produzir um retrato do Opus Dei isento de paixões. Como a cerveja preta e extra-forte, a organização sempre terá, segundo o autor, um número fiel de seguidores para os quais representa uma âncora irremovível num mundo movediço.

Quem pertence ao Opus Dei não tem dúvidas nem relativismos numa sociedade povoada por ambos: pensa com a Igreja e vive como o papa manda.

'A Igreja Católica não é uma democracia'
diz a numerária Maria Lúcia Alckmin.

 Para membros da Obra, parte significativa dos católicos não passa de 'católicos de censo' - que servem para expandir as estatísticas, mas seguem apenas as crenças pessoais. Em Caminho, Escrivá demonstra desprezo com relação a essa humanidade supostamente sem ideal: 'Que conversas! Que baixeza e que... nojo! - e tens de conviver com eles, no escritório, na universidade, no consultório... no mundo'.

Com apenas 85 mil seguidores - 1.700 no Brasil -, o Opus Dei é irrelevante do ponto de vista quantitativo. Mas seus admiradores são estimados na casa dos milhões. Em 1950, num lance ousado, Escrivá conseguiu inédita autorização do Vaticano para aceitar cooperadores (leia-se financiadores) não-católicos e não-cristãos. Assim, a Obra tem apoiadores espalhados pelo mundo das mais variadas doutrinas - inclusive aqueles que nem sequer acreditam na existência de Deus. Além de aumentar o poder de penetração do movimento nas diversas instâncias da sociedade, os cooperadores representam uma boa fonte de recursos. O vaticanista Allen estima o patrimônio da organização em US$ 2,8 bilhões - pouco se comparado ao da Igreja nos Estados Unidos (US$ 102 bilhões), muito se o parâmetro for a quantidade de membros.

Cada numerário é obrigado a deixar salário e patrimônio para o Opus Dei.

 'Quando completei cinco anos na Obra, tive de lavrar um testamento deixando minha herança para a instituição', conta o ex-numerário David Fernandes, engenheiro do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). 'Quando saí, não me devolveram nada, mas acredito que não tentem me tomar as coisas. Se a Obra é tão boa, por que não há uma plaquinha na frente de cada centro dizendo o que são?'

A grande força do Opus Dei é sua proposta de 'santificação no meio do mundo'. Escrivá construiu a biografia para tornar-se 'o santo do cotidiano': 'elevar o mundo a Deus e transformá-lo a partir de dentro'. Em lugar de padres e freiras confinados em conventos ou dioceses, o exército de leigos da Obra vive em centros e cumpre o celibato, mas atua em postos estratégicos na sociedade como peças de uma engrenagem. Como diz Escrivá: 'Que preocupação há no mundo por mudar de lugar! Que aconteceria se cada osso, se cada músculo do corpo humano quisesse ocupar um posto diferente do que lhe compete? Não é outra a razão do mal-estar no mundo. Persevera no teu lugar, meu filho; daí, quanto poderás trabalhar pelo reinado efetivo do Senhor'.

 O numerário começa por obedecer ao 'plano de vida espiritual' com uma lista de obrigações diárias: duas orações mentais de meia hora, cinco minutos de leitura do Evangelho e dez de leitura espiritual, reza do terço, missa, comunhão seguida por dez minutos de ação de graças, meditação dos mistérios do rosário, reza das preces da Obra, exames de consciência particular e geral, reza de três ave-marias com os braços em cruz pedindo a castidade antes de dormir, aspersão de água-benta na cama para afastar as tentações do demônio. Uma vez por semana encontra-se com o diretor espiritual para uma 'conversa fraterna'. Nela, nada pode ser escondido. A etiqueta manda iniciar pelas revelações mais vergonhosas, obedecendo ao princípio da 'sinceridade selvagem'. 'Além de tudo isso, eu ainda ensinava na universidade. Voltava tarde e tinha de preparar aulas. Comecei a apresentar sintomas psicológicos estranhos, entrava em pânico', conta um engenheiro que deixou a Obra em novembro, depois de 24 anos. 'Pensei que acabaria morrendo se continuasse ali. Apavorado, fiz minhas malas e fui para um hotel.'

A liberdade religiosa, o direito de fazer o que bem entende com seu corpo e a livre manifestação são valores indiscutíveis. Quem pertence ao Opus Dei acredita que beijar o chão ao acordar e bradar 'Serviam' ('Eu servirei', em latim), cumprir rotina rígida e obedecer sem duvidar são um conforto e uma fonte de felicidade. Para os dissidentes, é lavagem cerebral - uma estratégia que usa a fé e a Igreja Católica para controlar e influenciar o mundo. São Escrivá teve o cuidado de reservar um ensinamento para esse impasse: 'Isso - o teu ideal, a tua vocação - é... uma loucura. E os outros - os teus amigos, os teus irmãos - uns loucos... Não tens ouvido, por vezes, esse grito bem dentro de ti? Responde, com decisão, que agradeces a Deus a honra de pertencer ao 'manicômio''.
 #Q:Entrevista com Antonio Carlos Brolezzi, ex-numerário e autor de um livro com dicas para quem abandona a obra:#





Memórias sexuais
Ex-numerário escreve um livro com dicas para quem abandona a Obra e quer reabilitar o desejo

Dez anos depois de abandonar o Opus Dei, Antonio Carlos Brolezzi escreve um livro em tom confessional sobre a Obra e o sexo. Dividido em duas partes, a primeira vai se chamar 'Memórias Sexuais de um Numerário' e a segunda 'Manual do Ex-Numerário Virgem'. Com 40 anos hoje, Brolezzi só perdeu a virgindade aos 30. Professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP, casado pela segunda vez e pai de uma filha, ele conta algumas de suas lembranças na seguinte entrevista.

ÉPOCA - Como entrou para o Opus Dei?
Antonio Carlos Brolezzi -
Ninguém vai para o Opus conhecendo a proposta, eles disfarçam. Me convidaram para um curso de Astronomia com professores da USP. Achei estranho que não havia meninas, mas pensei que elas não se interessavam pelo tema. Eu era office-boy, não me vestia bem. Lá o pessoal se vestia bem, eu achava superchique. A gente tem vontade de se aproximar porque são pessoas que parecem os elfos do Senhor dos Anéis, seres meio distantes mas ao mesmo tempo admiráveis. Imagine que eu pensava que aqueles caras tinham namoradas sensacionais, superintelectuais também. Só depois, quando entramos, é que descobrimos que é tudo montado. Quando eu entrei na USP para cursar Matemática começaram a me ligar, não me deixavam em paz um segundo. Criaram uma crise artificial de vocação. Vendem que somos especiais, que temos uma luz na testa, e ficamos seduzidos. Passamos a ter acesso a uma porta secreta, mostram uma sala onde só eles se reúnem.

Você passa a ter uma vida secreta, não pode contar a sua família. Dá um passo aos 20 anos que só você sabe. Fazendo uma analogia com Harry Potter, é como se o Opus fosse o mundo dos magos e fora de lá o dos trouxas, que desconhecem a magia.

ÉPOCA - Que memórias sexuais tem alguém que não podia nem sequer pensar em sexo?
Brolezzi -
Eu acho muito interessante olhar para o Opus Dei sob o ponto de vista da sexualidade. Quando eu fui para o centro tinha 19 anos e nunca havia tido uma relação sexual. Foi chocante para mim quando decidiram que eu não podia mais dar beijo no rosto de colega na faculdade. Um dia uma colega veio me dar um beijo e eu virei a cara. Foi o que o Opus chama de 'ato heróico', mas eu passei a noite chorando. A idéia deles é que você ganha as batalhas fazendo pequenas coisas. Não é 'eu não vou transar', é 'eu não vou olhar'. Se tem uma revista de mulher pelada numa banca, você precisa atravessar a rua. Uma vez eu vi uma bunda numa revista e contei para o diretor. Ele falou: 'Essas revistas pintam as fotos. Porque não é rosa, é marrom, marrom!'. Ele gritava, acho que se referia ao ânus. Queria que eu visse sujeira nessas coisas. Em 1991, vi uma folha rasgada na rua, com uma loira, de quatro, que dava para ver a vagina por trás. Fiquei espantado. Esse negócio de não poder olhar tem efeito contrário, isso aconteceu em 1991 e eu nunca esqueci. No meu livro terá um capítulo chamado 'Como é a vagina'.

ÉPOCA - Como assim?
Brolezzi -
Uma vez eu fiz um desenho de uma mulher nua num caderno e fui me confessar. O confessor queria saber como eu desenhei se nunca tinha visto. Eu disse que imaginei como se fosse uma boca, só que na vertical. Ele riu, deu a entender que eu era um ignorante.

ÉPOCA - E como foi ver uma de verdade?
Brolezzi -
Foi a primeira broxada. Tinha 30 anos, era virgem, tinha acabado de sair da Obra e arrumado uma namorada. Fomos a um motel e ela perguntou: 'Você tem camisinha?'. Eu disse que não, e ela falou para eu pedir pelo telefone. Eu nem sabia o que era camisinha, imaginava que se comprava numa casa escura, que precisava de uma senha. No centro, quando falavam de sexo, falavam contra a camisinha. Pedi cinco, todo constrangido. Ela ficou toda feliz, mas eu não usei nenhuma. O motel tinha uma luz meio apagada, meio vermelha, aquilo soava como o antro do demônio. Ela tirou a roupa, se deitou e eu imaginei que tinha de deitar em cima dela, só que meu pênis estava murcho. Me veio na mente a maldição que eles me lançaram quando eu saí. Disseram que Deus tinha me feito para ser solteiro, então eu podia não funcionar. Falaram que se eu tivesse um filho ele poderia nascer deformado. Quando broxei, pensei que eu era um cara estragado. Fiquei dez anos na Obra e passei dez anos fora dela tendo tremedeira e uma sensação de terror cada vez que ouvia ou lia o nome Opus Dei. Só quando conheci Viviane e nasceu minha filha, Alice, é que consegui superar.

ÉPOCA - Como conseguiu transar, afinal?
Brolezzi -
Vou até dar umas dicas no livro para quem sai da Obra. Você precisa ter amizade com o sexo feminino, primeiro. Conversar, dançar, para quebrar o esquemão de numerário, de não poder olhar para mulher. Ir sentindo que a mulher não é um dragão.

ÉPOCA - Você chegou a vestir um macacão antimasturbação para que não se tocasse. Tinha muita culpa de se masturbar?
Brolezzi -
Quem se masturba não pode nem comungar. Por isso, nos últimos minutos de oração, o padre se recolhe na sacristia. Se você se masturbou à noite, vai lá e se confessa. Nos centros grandes a fila era enorme nessa hora, afinal, um monte de moleques de 20 anos. Eu dormia rezando o terço para não ter tentação. Os devotos que me desculpem, mas muitas vezes acordava com ele enrolado no pênis.

ÉPOCA - Por que chegou a hora de exorcizar os fantasmas escrevendo um livro?
Brolezzi -
Quero falar com naturalidade sobre tudo isso. Você mortifica os cinco sentidos, precisa combater cada um deles. Se você gosta de olhar para uma janela, decide que não vai olhar. Se gosta de sal, passa a comer sem sal. Faz coisas como não encostar na cadeira, não ouvir mais música. Somos treinados a imaginar que o cheiro do sexo é ruim. Por isso quero escrever, porque para mim foi problemático fazer essa desprogramação. Quero falar no livro sobre casamento, porque nós tínhamos palestras em que o padre nos falava que os supernumerários (membros casados do Opus Dei) reclamavam que a mulher cheirava a alho e a fritura, que tinham de tomar banho de novo, que era chato e desgastante. É como explicar a normalidade para uma pessoa que achou que a normalidade era anormal. Quem sai tem de entender que quando você casa às vezes você briga e sua mulher não precisa ser santa, que não dá para fazer a 'correção fraterna' (quando um numerário chama a atenção do outro por pequenos erros cometidos) na sua mulher. No começo do meu casamento eu fiquei superneurótico com esse negócio das toalhas, por exemplo. Achava que tinha de ter lugar certo, corrigia minha mulher. Eles também sempre ridicularizavam quem tinha filho, que filho chorava, tinha doença. Quando saí, disseram que eu só arrumaria uma bruxa para casar.

ÉPOCA - Qual vai ser o último capítulo?
Brolezzi -
Sobre o sentido da vida. Quero dizer que ninguém sabe qual é o sentido e é preciso se acostumar com isso. O sentido da vida não está escondido com algumas pessoas, é você quem vai dar. Para mim, é ficar com a minha mulher, olhando revista e planejando a casa que a gente vai construir. O que importa é tomar sua história nas mãos e ter a memória apaziguada.
#Q:Pais versus filho numerário:#



'Roubaram meu filho'
Mãe de numerário, Elizabeth Silberstein lançou um manual de alerta às famílias católicas contra 'a falsa obra de Deus'

'Meu filho tinha 14 para 15 anos quando foi a um centro cultural do Opus Dei para fazer um curso de Redação. Foi convidado por um amigo do colégio. Apitou (tornou-se oficialmente numerário da Obra) aos 24 anos. Tinha acabado de levar o fora de uma namorada. O pessoal do Opus ligava 15 vezes por dia para a nossa casa. Pensei que eram amigos bacanas preocupados com o sofrimento dele. Quando falou que havia se tornado numerário, começou a chorar muito, e eu lhe perguntei por que não tinha nos contado antes. Ele disse que nós não entenderíamos. Essa é uma das frases-chave que eles põem na cabeça dos meninos. Para eles, os pais são os demônios que querem tirar a vocação. Em qualquer ordem da Igreja Católica, os seminaristas passam por vários testes para ter certeza da vocação. No Opus, ela é imposta. Eu propus ao diretor que meu filho passasse um ano de experiência, sem abandonar as atividades normais. Ele respondeu que eu tinha toda a razão e imediatamente o mandou para um retiro. Depois disse que lá não havia telefone. Eu e o pai dele fomos à polícia, descobrimos o telefone e chegamos ao retiro. Depois o diretor do centro ligou pedindo desculpas por ter mentido que não havia telefone onde meu filho estava. Quando entendi o que era ser numerário do Opus, chorei cinco anos sem parar. Tive o diagnóstico de depressão pós-traumática. Faz quatro meses que levantei. Aí disse: 'Chega'. E resolvi escrever o livro. Se eu evitar que uma única família passe pelo que passamos, já valeu a pena. A gente se prepara para não perder os filhos para as drogas e para a violência. Ninguém se preocupa em perder o filho para a religião.'


'Meus pais precisam rezar'
O numerário Augusto Silberstein diz que a família tem ciúme da Obra e frustração porque ele entregou a vida a Deus
Aos 29 anos, no Opus Dei há cinco, Augusto Silberstein faz pós-graduação em Administração e é subdiretor de um centro no Rio. Deu a seguinte entrevista a ÉPOCA.

ÉPOCA - Você acha que seus pais estão errados ao criticar a Obra?
Augusto Silberstein -
Meus pais têm uma apreciação errada da realidade por causa da paixão. É como usar óculos escuros. Se você põe um, tudo o que enxerga é escurecido. Eles têm de tirar os óculos para enxergar o lado bom da Obra, que é uma instituição maravilhosa. Me incomoda quando apresentam o Opus Dei assim porque parece que eu sou um fanático. Mas amo meus pais de coração. Acho que, como eu, meus pais têm de rezar.

ÉPOCA - Mas por que você acha que eles enxergam dessa maneira?
Silberstein
- Ciúme é uma das paixões. Imagine que você gosta muito de uma pessoa e se casa com ela. Aí entra a sogra. Ela vê que o filho está apaixonado, que uma pessoa está roubando o filho dela. Mas não é verdade. Também há uma certa frustração por eu não ter seguido o script que eles queriam. No meu caso, resolvi entregar minha vida a Deus.

ÉPOCA - Como você lida com o cilício?
Silberstein -
O cilício aparentemente choca, parece absurdo, medieval. Mas o Opus aproveita uma série de coisas antigas numa realidade nova. Acho que as pessoas não se escandalizam por causa da dor, porque hoje elas se submetem a coisas que provocam dor e que são desagradáveis só para ficar bonitas. O que escandaliza as pessoas é fazer algo desagradável por Deus.

ÉPOCA - Como é seu cotidiano? Com relação a livros e filmes, por exemplo?
Silberstein -
Como qualquer pai de família preocupado com a formação, a Obra tem de se preocupar com que não entre bobagem na cabeça dos filhos. Um numerário não pode ir ao cinema, mas não quer dizer que cinema seja bobagem. A gente assiste a filmes nos centros.

ÉPOCA - Qual foi o último filme que viu?
Silberstein -
Batman! É ótimo.

ÉPOCA - E livros?
Silberstein -
Livro que fala mal da Igreja, que te deixa deprimido, não pode. Nos centros há bibliotecas com bons livros.

ÉPOCA - O que está fora não é aconselhável?
Silberstein
- Exatamente.

ÉPOCA - Quais os autores que você sabe que não são bem vistos?
Silberstein -
(José) Saramago, por exemplo. Por que você vai ler uma coisa que fala mal do que você ama?



Os anos sombrios
Depois de mais de uma década na Obra, Thelma Pavesi luta para amarrar os pedaços da vida que deixou para trás

'Eu era uma das melhores da turma no curso de Química, da Unicamp. Namorava há sete anos, pretendia me formar e casar. Fui convidada por uma colega para assistir aulas de doutrina católica. Fui apenas para ser simpática. E continuei freqüentando por causa da insistência da moça que me 'tratava', é assim que eles dizem. Ela era responsável pela 'moça de São Rafael'', como chamam a garota que tem chances de 'apitar', entrar para a Obra. No caso, eu.

Essa pessoa faz um levantamento sobre a sua vida, situação financeira, profissional, amorosa. Ela foi entrando na minha intimidade até perguntar se eu era virgem. Se não fosse, seria um critério para desistirem de mim. Para apitar, eles criam uma crise vocacional. Dizem: 'Deus te chama. E chama só uma vez''.

Chegou a um ponto em que eu não conseguia mais trabalhar, comer, dormir porque Deus esperava a minha resposta. Fui instruída a desmanchar o namoro. Quando finalmente apitei senti alívio porque fiz o que esperavam de mim. No dia seguinte passei por um enorme arrependimento, mas já tinha dado a minha palavra a Deus. Se desistir você é uma traidora, uma Judas, é inferno certo.

Exerci lá dentro diversos cargos, comandei casa de retiro, tive de deixar meu emprego de professora. Cuidei da parte financeira, embora não faça a menor idéia de para onde vai o dinheiro. A TV ficava chaveada. Fiz coisas como colar um vestido sobre as pernas da Ivete Sangalo, no jornal, que era sempre censurado. Fui ensinada a olhar para um homem como se fosse uma espiga de milho. Quando não suportei mais e disse que queria ir embora, me ofereceram remédio. Já estava em uma casa em que a maioria tomava medicamentos com tarja preta. Entrei em depressão. Fiz tratamento. Quando melhorei, comecei a pensar em como arranjar dinheiro para ir embora, já que meu cheque, cartão e passes ficavam retidos pela Obra. Consegui um jeito de fazer caixa dois e juntei um dinheirinho. Encontrei um quartinho para alugar e me mudei. Saí há três anos, no dia da missa em homenagem ao fundador. A primeira coisa que eu fiz foi ir ao cinema. Entrei num filme qualquer, nem me lembro qual, mas adorei a sensação de liberdade. Eu tinha pedido no meu aniversário para assistir ao filme 'Uma mente brilhante' (ganhador de quatro Oscars) e não permitiram. Hoje tenho 39 anos, estou sem namorado, sem emprego e lidando com o fato de talvez nunca ser mãe. Não vejo esses 13 anos no Opus como algo que eu precisava passar, mas como uma manipulação que não quero que se repita na minha vida.



Marcelo Rudini/ÉPOCA
CONTROLE O professor Renato da Silva teve seus arquivos violados pelos superiores
Invasão de privacidade
Renato da Silva foi expulso depois que o subdiretor violou seus arquivos e considerou um e-mail suspeito
'Entrei para a Obra em 1982, aos 17 anos. Estudava em uma escola católica e vi um panfleto sobre orientação profissional. Fui, sem saber que era do Opus Dei. Quando minha família soube, eu estava na Obra havia três anos. Em 1989, fui enviado para o sul e consegui emprego em uma universidade federal.

Professor universitário é uma posição estratégica e eles não tinham ninguém lá. Sou doutor em Ciência da Computação pela USP e sempre valorizei a Internet, mas notei que havia uma atitude hostil a ela. Começaram a baixar normativas dizendo que só haveria um computador por casa, que deveria ser desligado à noite e que ficaria em local público. Fiz um dossiê de 82 páginas e encaminhei à comissão regional questionando as regras. Jamais pensara em sair da Obra. Como aprendi: ''Meu lugar é aqui, para o bem ou para o mal'. Mas em 2003 fui ao Rio a trabalho. Quando voltei, o subdiretor me disse: 'Na sua ausência, fiz uma coisa que não deveria ter feito, mexi nos seus arquivos e achei um negócio que levei ao diretor'. O diretor falou: 'Isso é tão sério que eu encaminhei à comissão regional e eles decidiram que é grave, você está confuso e não deve mais ficar aqui.' Perguntei o que poderia ser. Não me disseram. Não sabia para onde ir, depois de 21 anos vivendo em um centro do Opus. Lembrei do Jean (Lauand, hoje também dissidente), que era numerário mas morava sozinho. Passamos a noite em claro conversando. Entrei em depressão e tive que fazer tratamento. Hoje, aos 40 anos, concluí que você passa por um condicionamento muito forte, baseado na culpa. Segundo os psicólogos, é lavagem cerebral. Só depois descobri porque havia sido expulso. Era um e-mail, rascunho de um texto com perguntas incômodas para o diretor espiritual. Eu mal tinha lido, não tinha dado muita importância.'




Opus Dei: o sofrimento das "domésticas" da organização

revista epoca

06/07/2007

por Eliane Brum

O fundador do opus dei, o espanhol Josemaría Escrivá de Balaguer, costumava dizer que a espiritualidade é mais importante que a sabedoria para quem deseja se entregar a Deus. É o preceito de número 946 de seu livro mais popular – Caminho. Escrivá fazia uma ressalva: “Quanto a elas (as mulheres), não é preciso ser sábias; basta que sejam sensatas”. A baiana Rosidalva Julião afirma que não era uma mulher sensata quando ingressou num centro do Opus Dei para lavar, limpar e fabricar os instrumentos de martírio corporal usados pela controversa organização da Igreja Católica.

 REFÉM
Rosidalva Julião diz que o Opus Dei isola as numerárias auxiliares, 
responsáveis pelos serviços domésticos, para que não consigam sair

Em menos de dois anos, ex-integrantes e familiares de membros ativos do Opus Dei publicaram seis livros no Brasil. A mais recente ofensiva editorial revela a vida cotidiana das mulheres entre as paredes da Obra de Deus, tradução da expressão latina Opus Dei. Rosidalva é a personagem real de dois títulos: O Opus Dei e as Mulheres (Panda Books) e Sob o Jugo do Opus Dei – este último lançado no fim de junho. Seu depoimento ilumina, pela primeira vez, uma figura obscura da organização. Rosidalva era numerária auxiliar, única categoria restrita ao sexo feminino.

Dois tipos de membros vivem em centros do Opus Dei: os numerários e as numerárias auxiliares. Os homens são separados das mulheres. Os numerários são leigos celibatários de ambos os sexos. Têm curso superior, e a maioria desempenha suas atividades em postos estratégicos da sociedade. A força do Opus Dei é, segundo os preceitos, “a santificação no meio do mundo”. No Brasil, a organização começou a atuar no fim dos anos 50. Boa parte dos primeiros numerários foi recrutada entre os melhores alunos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

As numerárias auxiliares, não. De origem humilde, elas são recrutadas em zonas rurais e nas periferias das grandes cidades. Na prática, são as domésticas do Opus Dei. Com algumas diferenças. Não podem casar, namorar nem fazer sexo. Sua carteira de trabalho é assinada pela secretária ou administradora do centro. Ao ingressar na Obra, a aceitação das regras é automática. Uma delas é doar o salário. Como a própria organização as remunera, elas vivem uma situação ambígua: nem sequer chegam a receber o dinheiro e passam a depender da administração para todas as suas necessidades.

“Eu era uma escrava”, afirma Rosidalva. 
 “Diziam que meu salário era para Deus. Mas eu tinha de assinar os recibos.”
 
Ela foi recrutada aos 20 anos, no ponto de ônibus. Havia acabado de chegar a São Paulo, vinda de Salvador. Esperava conseguir um emprego e terminar o ensino médio para fazer faculdade de Fisioterapia. “Conheci uma auxiliar no ponto de ônibus. Ela disse que trabalhava num lugar maravilhoso, que eu iria lidar com administração e poderia estudar”, diz Rosidalva. “Depois de seis meses, eu queria ir embora, mas insistiam que Deus tinha me escolhido e que eu estava virando as costas. Era uma pressão terrível. Eu não queria ter vocação, mas afirmavam que eu tinha. Jesus Cristo era meu amigo. Virou meu patrão.”

Quando precisam de um médico ou dentista, as auxiliares são encaminhadas a profissionais ligados à Obra. Em geral supernumerários – a categoria dos membros casados. Elas raramente saem à rua. Quando isso acontece, costumam ser acompanhadas. Não podem ir ao cinema. Só lhes é permitido ler os livros autorizados pela instituição. Jorge Amado e José Saramago, por exemplo, são escritores vetados pelo Opus Dei. A TV é trancada a chave.

Uma vez por semana, as auxiliares são submetidas à “conversa fraterna”. No ritual contam à “diretora espiritual” tudo o que pensaram e sentiram, usando o que o fundador chamava de “sinceridade selvagem”. São aconselhadas, como os demais numerários, a começar sempre pelos “sapos mais gordos”. “Em duas ocasiões, fiz as malas para ir embora, mas tive de desfazer”, diz Rosidalva. “Não tinha nenhum dinheiro, não conhecia ninguém fora do centro e minha família estava longe.”

No Sítio da Aroeira, no município paulista de Santana do Parnaíba, as numerárias auxiliares são responsáveis também pela fabricação de instrumentos de martírio corporal: o cilício – uma tira de arame com pontas usada no alto da coxa durante duas horas por dia – e as disciplinas – um chicote de corda trançada usado para açoitar as nádegas nuas uma vez por semana. “Para fazer o cilício, é preciso cortar os arames com um tipo de alicate de bijuteria. Como no início eu não sabia fazer direito, sem querer cortava enviesado. Aí machucava mais, porque ficava pontudo, entrando mais na carne”, diz Rosidalva. “O padre elogiou esse fato e pediu à diretora para me dizer que estava muito bem-feito. A orientação era experimentar o cilício depois de pronto. Se não machucasse, era necessário desmanchar e refazer.”



O uso do cilício e da disciplina é a característica que mais instiga a imaginação do público no que se refere ao Opus Dei. O objetivo da mortificação corporal é evocar o sofrimento de Cristo para fazer a caridade. Pode parecer estranho que, no século XXI, uma organização formada em sua maioria por profissionais liberais e acadêmicos use instrumentos de martírio. No Ocidente, porém, o respeito à autonomia do indivíduo é uma conquista de toda a sociedade. No Estado laico, toda escolha deve ser respeitada, desde que não viole a lei. Apesar de a Igreja Católica criticar o que considera um excesso de liberdades individuais no mundo moderno – especialmente quando se trata de escolhas na área da moral sexual –, as práticas de qualquer um de seus fiéis são merecedoras do direito à tolerância garantido a todas as fés.

A crítica de alguns dissidentes é que não escolheram seguir regras como a mortificação corporal. Além de produzir o cilício e as disciplinas, as numerárias auxiliares também são obrigadas a usá-los. “Por fazer cilícios e hóstias, fiquei com tendinite”, afirma Rosidalva. “Por usar o cilício, tenho até hoje pontinhos brancos nas coxas.”

Aos 32 anos, casada e com um filho pequeno, ela diz ter decidido escrever o livro “para conseguir viver”. “O Opus Dei era como uma infecção dentro de mim. Bloqueava toda a minha vida. Consegui um emprego de camareira de hotel. Quando fui arrumar os quartos, paralisei. Não conseguia me mexer, porque me lembrava dos centros. Fiquei desempregada”, diz. “Logo que saí, tinha pesadelos recorrentes. Sempre estava presa em um quarto quando começava a encher de água, pegar fogo ou ser invadido por ratos e baratas. Agora, botei tudo para fora e quero esquecer.” Hoje, Rosidalva é secretária de uma paróquia católica, em São Paulo.

ATAQUE EDITORIAL 
Os dois últimos lançamentos mostram o cotidiano das mulheres entre as paredes da Obra


Guerra de mães
Rosidalva divide as páginas do livro Sob o Jugo do Opus Dei com Josefa Rodrigues – mãe de uma numerária auxiliar. Desde o ano passado, Josefa e o marido, Francisco, movem uma campanha pelo site Orkut, chamada “Opus Dei – Libertem Taís!!!”. Filha do meio do casal, Taís foi levada a um centro do Opus Dei aos 17 anos para trabalhar. “Não sabíamos o que era Opus Dei. A Taís estava terminando o ensino médio e estávamos desempregados. A diretora do centro ligou perguntando se ela não queria fazer uma experiência. Quando surgisse um emprego melhor ou ela pudesse fazer faculdade, sairia”, diz Josefa. “Achei ótimo, porque estava em um lugar seguro, da nossa Igreja, que sempre foi referência para tudo na nossa vida. Então, autorizei.”


Taís nunca mais saiu. Hoje tem 23 anos e tornou-se numerária auxiliar. “Minha filha desistiu de fazer faculdade, afastou-se da família, virou um zumbi. Só então começamos a investigar e descobrimos o que era o Opus Dei. Ficamos horrorizados, mas já era tarde”, diz Josefa. “Não tenho nada contra ser empregada doméstica, mas não acredito que alguma mãe deseje esse futuro para sua filha. Ninguém escolhe essa vocação. A gente é pobre, mas hoje pobre chega à faculdade. Até entrar no Opus Dei, a Taís era uma ótima aluna e queria estudar.”

Francisco é caseiro de um sítio no município paulista de Itupeva. Ganha R$ 600 por mês. Em abril de 2006, comprou um computador em 18 prestações de R$ 120. Com a ajuda da filha caçula, ele e a mulher transformaram a internet numa arma. Mantêm ativa no Orkut a comunidade usada para denunciar o Opus Dei. Enviaram e-mails a todos os bispos do Brasil, ao Núncio Apostólico e até para a Embaixada do Brasil no Vaticano. “Imagina eu, um jardinheiro que não sabe nem falar. Agora estou no Orkut, no MSN”, diz Francisco.

O Opus Dei gerou algum barulho no início de sua história. Escrivá fundou a organização em 1928 e apoiou a ditadura franquista na Espanha. A Obra passou a maior parte de seus quase 80 anos aumentando sua influência na Igreja Católica sem chamar a atenção do mundo. Só ficou conhecida do grande público a partir de 2003, ao se tornar tema de um dos maiores best-sellers de todos os tempos – O Código Da Vinci, de Dan Brown. Mas esta era uma obra de ficção. A série de livros de não-ficção só foi possível no Brasil por causa da internet.

 Acima, um bilhete em que a garota diz para quem dedica suas mortificações 


Em 2003, um grupo de ex-numerários tomava chope e comia frango à passarinho no Senzala, tradicional bar de São Paulo, quando decidiram montar o site www.opuslivre.org. “A partir daí, o que era individual tornou-se coletivo.

Pessoas separadas pela distância e pelo tempo se encontraram na rede e descobriram que sentiam as mesmas coisas, tinham os mesmos problemas”, diz o ex-numerário Márcio Fernandes da Silva. Ele é um dos três autores de Opus Dei: os Bastidores (Verus Editora), o primeiro livro contra a Obra, lançado em 2005. Hoje, além do site, os dissidentes compartilham confissões em comunidades do Orkut. Uma delas, a “Opus Dei Brasil”, tem quase 800 membros.

A internet uniu Josefa, Rosidalva e Betty Silberstein – a primeira mãe de um numerário a denunciar publicamente os meios de recrutamento da Obra. Betty escreveu uma espécie de manual, em 2005 – Opus Dei – A Falsa Obra de Deus – Um Alerta às Famílias Católicas. Organizou também o último lançamento, Sob o Jugo do Opus Dei. Ela e o marido, administrador de empresas, bancaram a edição de ambos. “Os centros não têm placas dizendo que são do Opus Dei. Crianças e adolescentes são levados pelos pais ou por amigos porque oferecem atividades educativas, recreação, palestras. Sabemos apenas que é algo da Igreja Católica. E por isso confiamos”, diz Betty. “Escrevo porque, se tivesse alguma informação, meu filho jamais teria entrado num centro. É nosso dever de mãe saber aonde estamos levando nossos filhos de 14, 15, 16, 17 anos.” No final de cada livro, ela publica todos os endereços dos centros para que os pais possam descobrir se o local freqüentado pelos filhos pertence ao Opus Dei.

Betty e Josefa uniram-se a outras mães de numerários – poucas ainda – para formar o “Grupo de mães de famílias prejudicadas pelo Opus Dei”. Acompanharam, empunhando faixas, os eventos públicos da visita do papa Bento XVI, em São Paulo e Aparecida. “Fomos atraiçoadas pelo que mais amamos na nossa vida, a nossa fé católica”, diz Josefa. As mães entregaram uma carta aberta aos bispos reunidos na 5a Conferência-Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, em maio. Nela, pediam a criação de “um grupo de trabalho” para tratar “dos casos em que famílias solicitam apoio e socorro no conflito com o Opus Dei”.

Quando levaram seus filhos a centros da Obra, eles eram menores de idade. Hoje, têm mais de 18 anos e declaram querer permanecer na instituição. Quando Taís não voltou para casa, Josefa e Francisco, católicos praticantes, não tiveram dúvidas sobre o que fazer. “Fomos pedir ajuda ao bispo”, diz Josefa. A pedido dos pais, dom Gil Antônio Moreira, bispo de Jundiaí, conversou com Taís. “Ela disse a dom Gil que está feliz no Opus Dei”, afirma o padre Jorge Demarchi, coordenador da pastoral de comunicação da diocese. “Ele não notou nada de estranho nela. Se a moça é maior de idade, o que mais o bispo pode fazer?”

 As mães esperam da Igreja Católica que obrigue o Opus Dei a ter “transparência no processo de recrutamento” e investigue os meios de “descoberta da vocação”. “O Opus Dei é como o traficante na porta da escola”, diz Betty. “Sem contar que, em todas as congregações, os seminaristas passam por vários testes para ter certeza da vocação. Na Obra, ela é imposta.”

O Opus Dei, procurado por ÉPOCA por meio de seu escritório de comunicação, em São Paulo, não quis dar entrevista. Taís, a filha do casal Josefa e Francisco, marcou entrevista para as 18 horas do dia seguinte ao primeiro contato. No horário marcado, disse que não iria falar. Ela vive em um centro no Paraná.



A voz dos bispos
O Opus Dei é a única prelazia pessoal da Igreja Católica. Esse status o torna mais influente que qualquer um dos movimentos conservadores aninhados no amplo regaço do catolicismo. Como prelazia, o Opus Dei não tem limite de território. Circula na sociedade mundana protegido pelo escudo milenar da Igreja Católica. Mas só responde a seu prelado, hoje dom Javier Echevarría. E ele só presta contas ao papa. Por esses privilégios especiais, concedidos à organização pelo papa João Paulo II, em 1982, seus inimigos costumam dizer que o Opus Dei é “uma igreja dentro da Igreja”.

Seu fundador, Josemaría Escrivá, foi canonizado em 2002, menos de 30 anos depois de sua morte, período rápido para a média na Igreja Católica. Basta lembrar que Frei Galvão, o primeiro santo brasileiro, morreu em 1822 e só foi canonizado neste ano – quase dois séculos mais tarde. Ter sido liderada por “santos” parece ter virado uma meta no Opus Dei. A causa de canonização do sucessor de Escrivá, monsenhor Álvaro del Portillo, falecido em 1994, já foi oficialmente aceita em Roma.

A maioria dos dissidentes da Obra se mantém católica. E vem aumentando a pressão para que a cúpula da Igreja tome uma posição diante de suas denúncias. “Afinal, somos ou não parte do rebanho? Quando temos um problema dentro da Igreja, a quem devemos recorrer?”, diz Betty. “Acho que não é ao rabino ou ao bispo da Universal.”

ÉPOCA enviou a dom Dimas Lara Barbosa, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o relato dos sucessivos pedidos de providências aos bispos e à CNBB feitos por Josefa Rodrigues e pelo grupo de mães. Em 27 de junho, dom Dimas respondeu com uma nota de 11 itens – oito deles explicavam o que é uma prelazia pessoal. No nono, dom Dimas declarava: “Em outras palavras, a CNBB não tem nenhuma autoridade para interferir nos assuntos internos do Opus Dei”.

Por considerar as denúncias “graves”, dom Dimas deu instruções precisas: as mães devem “recorrer diretamente à Congregação para os Bispos ou ao Tribunal da Rota Romana, ambos em Roma. Para isso, convém consultar um advogado especialista em Direito Canônico, disponível no Tribunal Eclesiástico mais próximo”.

Uma semana depois, na terça-feira passada, dom Dimas procurou ÉPOCA para explicar que teve tempo para conversar com alguns colegas e queria fazer uma “pequena modificação” na nota. Dom Dimas retirou a referência à gravidade das denúncias e acrescentou: “O processo de discernimento vocacional na prelazia é prolongado e cuidadoso e, pelo que me consta, marcado por um profundo respeito à liberdade das pessoas, de modo que só cheguem a formalizar seu compromisso estável aqueles e aquelas que tenham demonstrado maturidade suficiente e plena convicção do caminho que escolheram no seguimento de Cristo. Além disso, conheço diversos membros do Opus Dei. São pessoas de excelente formação intelectual, espiritual e moral e grande dedicação apostólica, e que não demonstram minimamente os desequilíbrios de que se tem falado”.

Dom Dimas também declarou-se, por telefone, “provocado a chegar à verdade”. Disse que neste final de semana começaria a ouvir, no Rio de Janeiro, os filhos das denunciantes – ele ainda não sabia quem, exatamente. Também estaria disposto a conversar depois com o grupo de mães – “talvez dividindo a tarefa com dom Geraldo Lyrio”, atual presidente da CNBB. “Como trouxeram o problema à CNBB, me sinto no dever de aprofundar a questão”, afirmou dom Dimas. “É uma atitude de ajuda fraterna. Se percebermos que há alguma coisa errada na formação, vou falar com o superior da Obra para ajudar a resolver.”

Em 29 de maio de 2006, dom Geraldo Majella Agnelo, então presidente da CNBB, respondeu a Josefa por meio de sua secretária: “Informo que sua Eminência fez o devido encaminhamento do assunto aos órgãos responsáveis, pedindo que lhe seja dado uma resposta”.

ÉPOCA solicitou uma entrevista com dom Geraldo para esclarecer quais eram “os órgãos responsáveis” e se havia alguma resposta. Uma semana depois, dom Geraldo enviou a ÉPOCA a mesma nota de dom Dimas, “por estar inteiramente de acordo”. Só fez um adendo: “Acrescento somente o fato de as jovens que ingressaram no Opus Dei serem de maior idade. É tudo”.

Ex-membros do Opus Dei têm denunciado – insistentemente – que foram “pressionados e manipulados” para entrar na Obra. “Será que alguém tem vocação para lavar louça e limpar banheiro? Eu queria estudar”, diz Rosidalva.

Ela afirma só ter conseguido abandonar o Opus Dei depois de sete anos, em 2002. “Percebi que não adiantava continuar repetindo que não tinha vocação”, diz. “Disse à diretora que tinha mentido. Que não era casta antes de chegar à Obra, que tinha tido vários homens, era muito pior que Maria Madalena.”

Embora a diretora não conseguisse entender como Rosidalva havia sido escolhida, achou melhor liberá-la. “Me deram R$ 350 e me botaram na rua uma semana depois”, afirma. “Saí virgem como tinha entrado.”

No Opus Dei, ela só podia usar o uniforme azul ou roupas em tons pastel. No lançamento do livro, vestiu-se de vermelho. Rosidalva afirmou que agora é uma mulher não apenas sensata – mas sábia.



Dentro do Opus Dei

28/10/2005

Revista Época

Ex-membros contam em livro os bastidores de autoflagelação, manipulação mental e estratégias de poder da prelazia católica

ELIANE BRUM


Até dois anos atrás, Jean Lauand encaixava diariamente na coxa por duas horas um anel com pontas de ferro chamado cilício. Uma vez por semana se autoflagelava com um chicote enquanto rezava a salve-rainha. Lauand não é um psicótico vivendo um delírio medieval. É professor titular da Universidade de São Paulo, doutor em Filosofia e História da Educação e renomado especialista em São Tomás de Aquino. O cotidiano de mortificações é explicado pelos 35 anos em que pertenceu ao Opus Dei, poderosa prelazia da Igreja Católica. Dos 16 aos 51 anos manteve-se casto. Ao sair, havia doado R$ 1 milhão à instituição. Com outros dois ex-membros, o juiz Marcio Fernandes da Silva e o cardiologista Dario Fortes Ferreira, escreveu o livro Opus Dei - Os Bastidores, lançado no fim de outubro.


É a primeira vez no Brasil que ex-adeptos da organização fundada há 77 anos por Josemaría Escrivá contam sua experiência em livro. Na Espanha, onde 'a Obra', como é chamada, surgiu, já existe uma bibliografia com denúncias de ex-integrantes. Os brasileiros criaram também o site www.opuslivre.org, usado pelos dissidentes para trocar confidências. Má notícia para a instituição, que ainda luta para recuperar-se dos danos causados a sua imagem pública pelo best-seller O Código Da Vinci, de Dan Brown.

O poder do Opus Dei não emana do número de adeptos, mas do lugar que ocupam na sociedade. No Brasil, a Obra tem oficialmente 1.700 seguidores - são 80 mil no mundo. Pouco, se comparado aos milhões de carismáticos, mas quase todos têm curso superior e estão estrategicamente instalados em zonas de poder. A categoria dos numerários, à qual pertenciam os autores, é a elite da organização. Vivem nos centros, são celibatários e doam bens e salários.

Numerário citado no livro, o jornalista Carlos Alberto Di Franco diz que a publicação 'é inconsistente, um factóide'. 'A forma como me citaram foi uma difamação. A instituição foi apresentada como uma monstruosidade', critica. A direção do Colégio Catamarã, também citado, não deu resposta ao pedido de entrevista. O Escritório de Informações do Opus Dei fez uma declaração: 'A prelazia do Opus Dei lamenta a publicação por tratar-se de um texto repleto de falsidades que deturpam grotescamente a realidade vivida nesta instituição, querida e abençoada pela Igreja Católica, que sempre contou com o manifesto apreço e estímulo dos papas que a conheceram'.

Os três autores seguem católicos praticantes. 'Estou com vergonha dos colegas na USP, mas decidi me expor por amor à Igreja, que é usada pelo Opus como um escudo para se proteger das denúncias', diz Lauand. Na terça-feira, Lauand e Marcio Fernandes da Silva receberam ÉPOCA para a seguinte entrevista.


Dados pessoais
Paulista, 53 anos, pertenceu ao Opus Dei por 35 anos, de 1968 a 2003
Carreira
Professor doutor de Filosofia e História da Educação na USP, especialista em São Tomás de Aquino
Dados pessoais
Paulista, 33 anos, passou a freqüentar o Opus Dei aos 10 anos e tornou-se numerário aos 15

Carreira
Formado em Engenharia Química e Direito pela USP, juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de SP
JEAN LAUAND E
MARCIO DA SILVA (à dir.)

Foto: Maurilo Clareto/ÉPOCA

ÉPOCA - Por que escreveram o livro?
Jean Lauand -
Depois de descobrir que fomos manipulados por anos, saíamos culpados, com problemas psicológicos. Os ex-membros são tratados como mortos. Fotografias e registros são suprimidos dos arquivos. Seu nome não pode ser citado. Criamos o site para que as pessoas pudessem se encontrar e trocar experiências. A certa altura, pensamos em acabar com ele. Então o Dario (Fortes Ferreira) disse: 'Não quero que meus filhos sejam enganados pelo Opus Dei por falta de informação'. Recolhemos 150 depoimentos. O livro ficou pronto em seis meses.


ÉPOCA - Vocês entraram para o Opus Dei antes dos 18 anos. É uma estratégia aliciar adolescentes, por ser uma fase da vida em que se está confuso com o lugar no mundo, descolando-se da família e em busca de um grupo?
Marcio Fernandes da Silva -
O que está por trás é a inexperiência típica dessa fase. É muito mais fácil doutrinar uma personalidade em formação. Aliciam nos clubinhos anexos ao centro. Tem autorama, montagem de aquários, coisas artísticas. Atividades de fachada para que a criança vá se acostumando com o grupo. Mais recentemente o aliciamento começou a ser feito no Colégio Catamarã, escola de educação fundamental com separação de sexos, em São Paulo. Mas não dizem que é do Opus Dei. É dirigido por pessoas fortemente ligadas à Obra. Dentro do Opus Dei, o Catamarã é chamado de 'cata-moleques'.

ÉPOCA - Você conta que quando estava na Obra fazia aliciamento e não dizia que era do Opus Dei…
Silva -
Fazer proselitismo é uma das obrigações dos membros. Você precisa conseguir outras vocações. Convidava colegas de escola para participar dos clubes. Dizia que era um centro cultural. Mais tarde convidava para uma meditação do sacerdote. Obedecia à instrução do diretor: 'Só depois você conta que é do Opus Dei, para que primeiro a pessoa conheça o centro e se envolva'. #Q:Dentro do Opus Dei - continuação:#


Arturo Mari/AP
PODER O papa Bento XVI abençoa a estátua de São Josemaría Escrivá
ÉPOCA - Usavam o cilício?
Lauand -
Todos usavam, não só eu. Duas horas por dia. E as disciplinas, autoflagelação, uma vez por semana enquanto dura uma oração, por exemplo, uma salve-rainha. Dá algumas dezenas de chicotadas nas nádegas. Isso é visto como uma grande manifestação de amor a Deus. Tem o sentido da penitência. A primeira coisa que eu fiz quando saí foi jogar o cilício fora.
Silva - Parece uma coleira de cachorro com pontas de ferro que penetram na carne. Você encaixa e faz pressão na perna. É significativo, porque mostra o grau de controle mental que a instituição consegue sobre o indivíduo.

ÉPOCA - Por que se submeteram?
Silva -
Entramos muito jovens, nosso mundo passa a ser aquele, todos os nossos amigos estão lá. Somos proibidos de ler o que queremos, de ir ao teatro e ao cinema, a TV é chaveada, o jornal já chega editado. Somos proibidos de ter amizade com gente de fora, nosso contato com a família é restrito. E ainda ficamos 43 dias por ano em reclusão. Vivemos numa bolha. Nem sequer podemos escolher a armação dos óculos que usamos.

ÉPOCA - Vocês mencionam a 'Conversa Fraterna', em que precisam revelar todos os pensamentos. Como é?
Lauand -
Uma vez por semana, 45 minutos do que chamam de 'sinceridade selvagem'. Não se pode esconder nada. Assim ficam sabendo de tudo. São Josemaría prescrevia contar as coisas que você não gostaria que outra pessoa soubesse, começando com 'o sapo gordo que está dentro da alma'. Se não conta, cria 'um segredo com Satanás'.

ÉPOCA - Como funciona a estratégia de ocupação das instâncias de poder na sociedade, como mídia e Judiciário?
Silva -
O Opus Dei busca o poder sobre o pensamento do indivíduo 24 horas por dia. Como os membros são bem situados, é através do poder sobre eles que conseguem influenciar as instituições. O pensamento básico é: o mundo e a própria Igreja Católica estão perdidos, mas nós temos a salvação porque recebemos a mensagem de Deus de santificar todas as realidades terrenas. O fundador tem uma frase: 'Temos de embrulhar o mundo em papel impresso'. É um plano do Opus Dei. No Brasil entraram com tudo nas redações.
Lauand - Na mídia, há um gênio que é o Carlos Alberto Di Franco, pessoa de uma simpatia e sedução incomparáveis e ä que há anos realiza o Curso Master em Jornalismo da Universidade de Navarra, que é do Opus Dei. Ele faz parte dos intocáveis de que falamos no livro. Tem privilégios para mostrar uma imagem pública glamourosa da instituição, pode fazer coisas proibidas para os demais numerários.



'Entre os livros proibidos estão todos os filósofos, desde Descartes, e autores como Saramago, Joyce e Umberto Eco. Há restrições para o Alienista, de Machado de Assis'
JEAN LAUAND



ÉPOCA - Poder para quê?
Lauand -
Poder em si. Vou dar um exemplo de como o Opus Dei age. Em 1980, João Paulo II, que recentemente tinha se tornado papa, veio ao Brasil. O Opus Dei estava interessado em conseguir o estatuto de prelazia e a beatificação do fundador. Em 1980, a Obra estava em São Paulo e mal-e-mal em Curitiba, no Rio de Janeiro e em Campinas. Montou-se uma operação de guerra dizendo que no Brasil só havia bispos de esquerda e que era preciso demonstrar ao papa, que havia sofrido horrores com os comunistas na Polônia, que podia contar com o carinho do Opus Dei. Aonde quer que o papa fosse, de Porto Alegre a Fortaleza, aparecia gente com faixas em que estava escrito 'Univ, totus tuus'. Univ é o nome de um congresso ligado ao Opus Dei e 'totus tuus' significa 'todo teu', e era o lema de João Paulo II. Eu comandei essa operação em Brasília. A ordem era aparecer na mídia a qualquer preço. Dez pessoas deviam fazer o barulho de mil. Conseguiram a prelazia dois anos depois. Outro exemplo: o grande sonho de João Paulo II era ir à Rússia, o que nunca foi possível. Mas na Páscoa, em Roma, em um encontro com jovens do Opus Dei, encontrou 31 russos: um de verdade e 30 de Navarra. Cantaram em russo perfeito. No final, um deles disse em russo que o amava. O papa se emocionou. Depois deram muita risada.

ÉPOCA - Homens e mulheres vivem totalmente separados no Opus Dei. A mulher é vista como algo pernicioso?
Silva -
Não se pode ficar numa sala fechada com uma mulher. Carona, nunca. Não se pode tratá-la no diminutivo. Beijinho no rosto, nem pensar. Se viajar de ônibus e sentar ao lado de uma moça, tem de trocar de lugar.
Lauand - Os homens podem dormir em colchões normais, as mulheres têm de dormir em tábuas. Têm de domar seus instintos perigosos. São proibidas de segurar crianças no colo e de ir a casamentos porque podem se deixar levar pela imaginação.
 
ÉPOCA - Como foi voltar ao mundo?
Silva -
Eu faço uma analogia com a cena do filme Matrix, em que Neo (personagem de Keanu Reeves) se liberta da cúpula em que funcionava como uma pilha para fornecer energia. Como ele, eu era apenas um instrumento da grande máquina de manipulação que é o Opus Dei. Já liberto, Neo está fraco, precisa refazer os músculos porque nunca os usou. Como ele, eu não estava pronto para viver fora da bolha. A instituição me destruiu. Busquei a ajuda de psicólogos. Tinha assumido personalidade robótica. Precisava me desprogramar. Foi como nascer de novo.




#Q:O juiz Marcio Fernandes da Silva conta como foi aliciado pelo Opus Dei quando ainda era um menino :#
'COM APENAS 15 ANOS GANHEI MEU KIT DE AUTOFLAGELAÇÃO'

Maurilo Clareto/ÉPOCA
Conheci o Opus quando eu tinha 10 anos. Fui convidado por um vizinho a participar das atividades do Clube Pinhal. Os 'clubes' do Opus Dei são sedes para captar garotos. Esse clube funcionava - e talvez ainda funcione - no subsolo do Centro Cultural Pinheiros, em São Paulo. Envolvia atividades manuais, brincadeiras, competições. Havia também uma aula de catecismo. Como meus pais nada sabiam sobre o Opus, deixaram-me freqüentar o clubinho. Aos 14 anos, passei também a participar do centro. Pouco a pouco, ia aumentando a dose de formação que recebia. O pessoal do centro foi me propondo participar de cada uma das atividades, como meditações e retiros, de maneira gradual. A certa altura, eu já ia quase todos os dias da semana para lá.

Aos 15 anos, um dos membros da instituição começou a insistir que eu também me tornasse um membro. Achava que ele estava enganado, que eu não tinha vocação nenhuma. Aí fiz um retiro. Uma das meditações teve como tema a vocação. O sacerdote insistiu na necessidade de sermos generosos. Perguntei ao sacerdote do centro se eu tinha vocação. Ele disse que sim, sem hesitar. Perguntei ao diretor, que também confirmou. Aquilo tudo me deu um mal-estar, uma sensação de beco sem saída. Minha idéia era casar, ter filhos, ser um cristão mais comum. Mas aquele era o pessoal que eu mais prezava, era o meu principal círculo de amizade. Depois de dez dias de dilema, 'apitei' - palavra que no jargão do Opus significa pedir admissão. Alguns numerários vieram me cumprimentar dizendo: 'Pax'. Eu deveria responder: 'In aeternum'. Naquele momento eu acreditava que Deus, falando através do sacerdote e do diretor, queria que eu fosse um membro do Opus. Pensei: 'Fui generoso'. Não contei nada aos meus pais. No Opus falavam que os pais não entendiam a vocação dos filhos, que o melhor era não falar nada ainda. Tornei-me numerário-adjunto, que ainda não mora no centro. O diretor foi me explicando como viver o chamado 'espírito da Obra'. Falou-me sobre o cilício, um cordão com pontas de ferro usado por baixo da roupa em uma das coxas, como mortificação obrigatória. Falou-me sobre as disciplinas, uma espécie de chicote de cordas usado uma vez por semana. Ganhei meu kit de autoflagelação. Aos 18 anos fui morar no centro.

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