Livro revela como o programa Bolsa Família transformou
a vida de beneficiárias oriundas de regiões secularmente
identificadas com a submissão feminina
de Jornal da Unicamp
Campinas, 28 de abril de 2013 a 04 de maio de 2013 – ANO 2013 – Nº 559
Dos
rincões miseráveis do Brasil emergiram as vozes de mais de uma centena
de mulheres. Beneficiárias do Bolsa Família, essas brasileiras abriram
as portas de seus casebres e, não raro, a própria alma, para contar suas
vivências e aprendizados com os recursos transferidos regularmente pelo
governo federal no âmbito de seus mais extenso programa destinado a
mitigar a pobreza. Os densos e francos relatos, que em muitas ocasiões
adquiriram contornos de pungentes confidências, permitiram trazer à luz
resultados muito mais abrangentes na vida dessas mulheres que a
subsistência proporcionada pelo auxílio financeiro. O recebimento da
renda monetária e o controle exercido por elas sobre o dinheiro – pois
são as titulares do cartão que permite sacar o benefício na boca do
caixa – modificaram substancialmente a percepção que tinham sobre a
própria vida. Houve ganho de autonomia e liberdade de escolha, de
dignidade e respeitabilidade na vida local. Em suma, passaram a ter voz
em regiões secularmente identificadas com a submissão feminina.
As
profundas mudanças comportamentais no universo feminino do Bolsa
Família constituem os achados de um estudo de fôlego desenvolvido a
quatro mãos pela socióloga Walquiria Gertrudes Domingues Leão Rêgo,
professora titular do Departamento de Ciência Política do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, e pelo filósofo italiano
Alessandro Pinzani, professor adjunto de Ética e Filosofia Política da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Concebida com a
finalidade de averiguar se, como e em que medida a nova renda e sua
regularidade incidiam sobre a vida cotidiana das famílias e, em
particular, das mulheres, a pesquisa completa estará disponível em breve
no livro Vozes do Bolsa Família, a ser lançado pela Editora Unesp.
Walquiria
chama a atenção para o fato de a pesquisa ter sido conduzida por
autores provenientes de formações intelectuais distintas (filosofia e
ciências sociais), além de provir de diferentes países (Itália e
Brasil). Um dos motivos principais da cooperação foi a tentativa, por um
lado, de aproximar a filosofia política da análise empírica da
realidade social e, por outro, de fortalecer o diálogo interdisciplinar
existente desde a fundação da sociologia. De acordo com ela, a simbiose
resultou em uma diferença de olhar e de perspectiva teórica que
proporcionaram ênfases e tons diversos ao tema abordado.
“Consideramos
o estudo como um experimento interpretativo, no qual estiveram
presentes o diálogo entre várias teorias contemporâneas normativas de
cidadania, de democracia e de autonomia e seu confronto com a realidade
das mulheres em estado de extrema pobreza, alvos do Bolsa Família”,
enfatiza.
IMPACTOS DO DINHEIRO
Foi
de Walquiria a iniciativa da empreitada, a partir de sua percepção de
que o programa teria impactos na subjetividade das mulheres, pelo fato
de o Bolsa Família conceder benefícios monetários. Segundo a “Sociologia
do Dinheiro” – uma das várias teorias que ofereceram respaldo
conceitual e analítico na avaliação do material empírico recolhido pelos
docentes na pesquisa – o dinheiro é uma instituição diferente, capaz de
transformar os indivíduos. Desse modo, argumenta a cientista, a
destinação de um valor financeiro é completamente diferente da entrega
de uma cesta básica, porque possibilita o desenvolvimento de
determinadas capacidades e competências que o dinheiro, em sua função
comunicativa e simbólica, acaba estimulando, como a liberdade de
escolher minimamente a forma de utilizar o recurso.
A
investigação requereu viagens de pesquisa ao longo de cinco anos, desde
2006, que Walquiria empreendeu a princípio sozinha e mais tarde
acompanhada de Alessandro, nas quais foram entrevistadas 150 mulheres
que recebem o Bolsa Família em regiões tradicionalmente consideradas as
mais desassistidas do país: sertão nordestino (Alagoas), zona litorânea
de Alagoas, Vale do Jequitinhonha (MG), periferia da cidade do Recife,
interior do Piauí, interior do Maranhão e periferia de São Luís (MA).
São lugares onde a população é em sua maioria semianalfabeta, os níveis
de escolaridade são baixíssimos, não existem opções de emprego e o
Estado é pouco atuante.
“Escolhemos
entrevistar beneficiárias que moram em áreas rurais ou em pequenas
cidades do interior, por entender que sua situação se diferencia muito
da dos pobres urbanos, objeto já de inúmeros estudos. É muito diferente
ser pobre em algumas daquelas regiões e ser pobre na periferia de São
Paulo, por exemplo, onde bem ou mal existem alternativas. Os pobres
rurais se deparam com problemas diferentes, começando pelo isolamento
geográfico que resulta, quase sempre, na impossibilidade de ter acesso a
serviços públicos básicos, como escolas e postos de saúde”, justifica a
professora.
Importante no processo
de seleção e localização das entrevistadas, segundo ela, foi o apoio de
contatos locais (pessoas diretamente responsáveis pela aplicação do
programa, como assistentes sociais, gestores, prefeitos, ou ainda
integrantes de movimentos sociais e intelectuais), que intermediaram
encontros com muitas das famílias ouvidas. Mas na maioria das vezes as
beneficiárias foram procuradas livremente, a fim de evitar
direcionamentos de qualquer natureza. Conforme observa ainda a
socióloga, não procederam a uma pesquisa estatística ou quantitativa,
mas fundamentalmente qualitativa.
“Aplicamos
em nosso trabalho de coleta de dados a técnica da entrevista aberta, e
não a do questionário fechado, pois julgamos ser a única possível nesse
tipo de investigação, exatamente porque pretendíamos alcançar alguns
níveis da estrutura subjetiva dos entrevistados, buscando apreender
mudanças mais profundas, morais e políticas, proporcionadas pelo
benefício. Realizamos então longas entrevistas, munidos apenas de um
roteiro de questões e na audição atenta da fala mais livre possível dos
entrevistados”, esclarece a pesquisadora.
O
método impôs a necessidade da realização de repetidas conversas e do
estabelecimento de uma relação de confiança com os entrevistados, o que
significou a dedicação de tempos longos tanto na coleta dos depoimentos,
com o retorno ao campo ao menos mais de uma vez – o propósito era o de
acompanhar a adaptação das famílias e, em particular, das mulheres à
nova situação econômica proporcionada pelo programa –, quanto na
reflexão sobre o material recolhido. Walquiria frustrou-se por não ter
recebido apoio financeiro da Universidade e decidiu custear a pesquisa
com recursos próprios, agendando as viagens em períodos de férias.
ECONOMIA DOMÉSTICA
Conforme
observam os autores do estudo, a pobreza é um problema complexo e, como
tal, não admite uma solução fácil. Portanto, não pode ser resolvida
simplesmente por meio de um programa de transferência direta de renda.
Do mesmo modo, é um equívoco pensar que o Bolsa Família se limita a
garantir a sobrevivência material de famílias destituídas e extremamente
pobres, embora, salientam, a medida governamental tem o mérito de
enfrentar importantes questões ligadas à pobreza. Uma delas é o início
da superação da cultura da resignação, ou seja, da espera resignada pela
morte por fome e doenças relacionadas à miséria: com o valor recebido,
podiam comprar comida para a família e já não passavam tanta
“necessidade” (termo este muito usado pelas entrevistadas para falar de
carências e privações).
“Pudemos
constatar nas entrevistas a imprescindibilidade da bolsa para
continuarem vivendo”, apontam os docentes. “Na grande maioria das
famílias pesquisadas, o repasse representa o único rendimento monetário
percebido e, em vários casos, constitui a primeira experiência regular
de obtenção de rendimento. Antes disso, a vida se resumia à luta diária
para obter comida, que poderia vir desde a sua caça como da ajuda de
familiares. Todas reconheceram que, se suas vidas eram duras, sem a
bolsa o seriam ainda mais.”
Dona
Amélia que o diga. Moradora de Pasmadinho (MG), 41 anos, mãe de dez
filhos, com marido desempregado que faz bicos quando estes aparecem, ela
salienta que agora a família já não passa fome, pois antes “às vezes,
não tinha para jantar ou não tinha para almoçar”. Ao responder sobre o
papel da renda na mudança da vida dura, não pestaneja: “Porque a gente tem mais liberdade no dinheiro. Pode comprar mais o que a gente quer.”
A
dupla afirma que, em diferentes níveis, praticamente todas as mulheres
registraram mudanças relevantes em sua vida material, embora um número
importante entre elas se queixasse do valor insuficiente do auxílio
(muitas o definiram como “uma ajuda”) para obter outras melhorias na
vida e ganhar mais liberdade na escolha dos bens de consumo, e quase
todas afirmassem preferir um trabalho regular.
De
forma geral, a bolsa (cujos valores são periodicamente reajustados) é
utilizada para comprar gêneros alimentícios básicos: arroz, farinha,
feijão, macarrão, carne e leite. Mas à medida que as usuárias aprendem a
planejar minimamente o uso do dinheiro, desenvolvem também a capacidade
de fazer escolhas e passam a buscar opções capazes, por exemplo, de
variar o cardápio familiar (“como optar por comer macarrão ou batata uma
vez por semana”, ilustra Walquiria) e até a se permitir algumas
“extravagâncias” impensáveis até então, como comprar bolachas e iogurtes
para as crianças. Nesse processo em que se aprimoram no gerenciamento
adequado dos recursos recebidos, acabam gradualmente por conseguir
acesso a outros bens e confortos para a família.
Para aqueles de quem a
miséria extirpou qualquer chance de escolha, os avanços são notáveis.
Em
Inhapi (AL), Dona Luisa, com 41 anos, mãe de oito filhos e avó de uma
menina de 2 anos, conseguiu pintar a casa e comprar sofás e televisão
com a bolsa de R$ 160,00 (valor em 2011) e mais algum dinheiro
proveniente dos “bicos” do marido, ajudante de pedreiro, relata a
pesquisa. Testemunhou com alegria a melhora que a bolsa trouxe a sua
vida (ela e a família comiam melhor e de fato a vida melhorara bastante,
contou) e revelou como conseguira se organizar para adquirir novos
colchões. Economizara tostão por tostão, não contou para ninguém, e, de
repente, comprou um colchão e depois, usando do mesmo procedimento,
comprou os demais. Demonstrava muita satisfação com sua proeza e,
principalmente, pelo fato de agora todos eles dormirem sobre “camas de
verdade”. Os planos para o futuro incluíam a compra de uma geladeira.
“A
casa e a aparência dessa família demonstravam pobreza, mas tinham tido
um grande ganho na dignificação de suas vidas, que se manifestava nos
gestos e modos de falar das melhorias da residência e da dieta
alimentar. Disso se depreende que o Bolsa Família não se limita a
sustentar as famílias que o recebem, mas dá a elas um certo fôlego que
lhes estaria permitindo sair da sua atual situação de privação absoluta
de bens”, analisa Walquiria.
BATOM E SEPARAÇÕES
O
fato de o emblemático cartão amarelo do Bolsa Família estar em nome das
mulheres é considerado positivamente pela quase totalidade delas. A
clássica resposta sobre essa questão é a de que elas são melhores
gestoras das finanças familiares e de que seus maridos normalmente são
incapazes de fazer compras adequadas às necessidades familiares ou
gastariam o dinheiro em bebidas. No entanto, muito mais que referendar
essa justificativa, a decisão do governo em destinar o benefício do
programa às mulheres (muitas passaram a dispor de uma renda fixa pela
primeira vez) representou, para as destinatárias, a conquista de maior
independência e segurança. Em sua maioria, afirmaram se sentir mais
livres (ou “à vontade”, nas palavras delas) e menos angustiadas no que
diz respeito à capacidade de adquirir bens primários para suas famílias.
Quase nenhuma delas entrega o dinheiro para o marido.
“A
gente fica mais independente quando coloca [o cartão] no nome da pessoa
mesmo”, afirmou de forma positiva e entusiasmada Dona Neusa, 36 anos e
mãe solteira de três filhos, moradora no bairro do Carvão, em Maragogi
(AL). “É, [ela] fica com mais direito, né? Porque a gente vive com mais
direito. Já que as mulheres não têm nada, não trabalham, aí elas têm
esse direito, né?”, ressaltou Dona Maria, de 29 anos, casada, com uma
enteada de 9 anos, também da mesma região. “Tá certo assim, pois a
mulher é mais econômica que o homem”, resumiu Dona Rosangela, do bairro
Anjo da Guarda, na periferia de São Luís do Maranhão.
O
caráter liberatório da disponibilidade de renda monetária pode ser
também aferido no aumento de autoestima e de autonomização na gestão das
próprias vidas e destinos das mulheres ouvidas. Passou a existir espaço
para cuidados antes proibitivos com a vaidade – ainda que a compra de
um simples batom ou creme para cabelo fosse carregada de um
injustificado sentimento de culpa por um “desvio” na finalidade do
dinheiro recebido –, sentiram-se mais à vontade para tomar decisões
sobre o próprio corpo – houve aumento no número de mulheres que procuram
por métodos anticoncepcionais – e algumas poucas tomaram inclusive
decisões morais difíceis, como conseguir desfazer casamentos infelizes,
ainda mais em regiões onde é raro a mulher tomar a iniciativa de
separações.
“A vida delas mudou
porque o universo de escolhas se ampliou consideravelmente. E exercer o
direito de escolha é uma questão fundamental para a democracia”,
argumenta Walquiria. Com um orçamento da ordem de R$ 24 bilhões estimado
para este ano e atendendo a um universo de 50 milhões de pessoas, o
Bolsa Família e seus beneficiários são alvo de polêmicas que, na opinião
de Walquiria, constituem um bom exemplo da repetição histórica do
preconceito e da força dos estereótipos em relação aos pobres.
“Nos
mais variados ambientes sociais eles são acusados de preferir viver do
dinheiro da bolsa, em vez de trabalhar; de fazer filhos para ganhar mais
dinheiro do Estado, entre outras. Essas acusações estereotipadas
provêm, na maioria dos casos, de pessoas que não dispõem de informações a
respeito do programa, como o valor da bolsa, por exemplo, que com
certeza não poderia substituir um salário regular; ou sobre o fato de
que as famílias recebem no máximo ajuda para três filhos, recentemente
para mais dois em idade escolar e uma ajuda para dois adolescentes,
entre 16 e 17 anos, enquanto os outros ficam excluídos; ou sobre o fato
de que os beneficiários não dispõem de capacitações, pois em sua grande
maioria são analfabetos ou pouco escolarizados; portanto, dificilmente
conseguem emprego”, defende.
Controvérsias
à parte, as mudanças na subjetividade das mulheres constatadas ao longo
dos cinco anos da pesquisa convenceram Walquiria de que o Bolsa Família
pode ser considerado como um longo processo, uma construção da
identidade, que altera a subjetividade –, ainda que de forma incipiente e
observada a ressalva de que o programa estaria apenas começando a
alterar a forma como estes indivíduos se enxergam.
Conforme
salienta, se a alimentação e outras conquistas no campo da
subjetividade estão sendo asseguradas, por outro lado as famílias ainda
carecem do acesso a demais direitos sociais básicos – assistência
social, saúde e educação – associados à transferência do benefício
estatal.
Para ela, contudo, o fato de
ser ainda muito insuficiente como tal não permite ignorar suas
possibilidades de se tornar uma consistente política de formação de
cidadãos, se complementadas por um conjunto mais amplo de políticas que
visem aos direitos garantidos na Constituição de 1988.
Nesse sentido,
destaca, o Bolsa Família começa
pela mais preliminar de todas as
prerrogativas da cidadania,
porque diz respeito ao mais preliminar
direito: o direito à vida.
Fendas de liberdade
O
campo de atuação de Alessandro Pinzani é a filosofia política. Ele
ocupa-se, em particular, das teorias da justiça social. O convite da
professora Walquiria para participar da pesquisa deveu-se a esse
interesse específico. Ao explicar em que aspectos o Bolsa Família, como
objeto de pesquisa, tornou-se importante e trouxe contribuições para as
suas investigações, ele observa que, em geral, os estudos de filosofia
política no Brasil tendem a permanecer em certo nível de abstração.
Há
exceções importantes, frisa, como os projetos de pesquisa social
realizados pelo Cebrap ou pelo Centro Brasileiro de Pesquisas em
Democracia de Porto Alegre, entre outros. A tendência, no entanto, é a
de estudar modelos teóricos sem preocupar-se muito com sua
aplicabilidade à realidade social, econômica e política brasileira.
Ainda
de acordo com ele, os modelos contemporâneos mais pesquisados no Brasil
– como a teoria da justiça como equidade, de Rawls, ou a teoria
discursiva do Estado e do direito, de Habermas – partem de pressupostos
que no país são dados só parcialmente. Em particular, pressupõe-se que
todos os cidadãos tenham alcançado e ultrapassado um nível mínimo de
qualidade de vida. “Mas a situação brasileira é diferente, com quase um
terço da população que vive perto da linha da pobreza definida pelo FMI.
Minha intenção era investigar o que isso significa para a elaboração de
uma teoria da justiça mais preocupada com sua concreta aplicação em uma
realidade social específica”, salienta Pinzani.
“Ao
mesmo tempo, analisar os efeitos de um programa de transferência direta
de renda monetária como o Bolsa Família, me ofereceu a possibilidade de
estudar a relação entre dinheiro e autonomia individual, que já foi
tematizada por Marx e Simmel, entre outros, e que me interessava desde
que comecei a ocupar-me da teoria das capabilities de Amartya Sen e
Martha Nussbaum”, complementa. Segundo ele, todos esses autores foram
fundamentais para elaborar os fundamentos teóricos a partir dos quais
foi possível interpretar os dados empíricos recolhidos na pesquisa de
campo. Finalmente, era sua intenção voltar a um aspecto importante de
uma tradição teórica, na qual ele afirma se reconhecer bastante: a
Teoria Crítica.
“Os membros da
chamada primeira geração de tal teoria, Adorno e Horkheimer, em primeiro
lugar, acreditavam na importância de conjugar pesquisa empírica e
teoria social e parece-me que esta visão seja ainda valiosa”, argumenta.
Em
relação aos seus achados acerca dos impactos do programa na autonomia
das beneficiárias, Pinzani faz questão inicialmente de ponderar que o
conceito de autonomia é bastante complexo. Existem, em primeiro lugar,
diferentes âmbitos, nos quais é possível falar em autonomia: moral,
político, econômico. Em segundo lugar, autonomia é algo que se pode
alcançar em diversos níveis. Não há necessariamente uma conexão entre o
fato de possuir um alto nível de autonomia econômica, por exemplo, e o
de possuir um alto nível de autonomia moral ou política.
“Em
nossa pesquisa, partimos de uma definição mínima de autonomia,
entendida como a capacidade de elaborar planos de vida e de atribuir
direitos e deveres a si e aos outros. Tal definição se aplica aos três
âmbitos anteriormente mencionados e deixa aberta a possibilidade de que o
indivíduo alcance diferentes níveis de autonomia em cada um deles”,
esclarece.
“Ao mesmo tempo, incluímos
em nossa visão de autonomia a ideia, defendida em particular por Sen,
de que a liberdade individual depende da existência de circunstâncias
subjetivas e objetivas que aumentam ou diminuem as opções de ação e de
formas de ser que os indivíduos consideram valiosas. Exemplos: a
possibilidade de viver livre de doenças endêmicas, como a malária,
implica na existência de políticas públicas dirigidas ao combate de tais
doenças; a possibilidade de encontrar uma profissão que nos sustente
depende da disponibilidade de trabalho na região na qual moramos.” Ao
investigar se e em que medida um programa de renda monetária regular
como o Bolsa Família contribuía para criar condições materiais capazes
de permitir aos beneficiários desenvolver maior autonomia, os resultados
coletados deixaram Pinzani moderadamente otimista: pode-se dizer que na
vida das beneficiárias abriram fendas de liberdade.
“A
experiência de uma renda monetária regular, além de libertá-las da
necessidade imperiosa de satisfazer carências básicas, lhes permite
certa autonomia em relação à planificação da vida delas e de suas
famílias – não somente em sentido estritamente econômico, mas também no
que diz respeito à saída de relações angustiantes de dependência
pessoal, particularmente de dependência dos pais, dos maridos, dos
irmãos ou cunhados, ou à esperança de uma vida melhor para seus filhos”,
constata.
O pesquisador verificou
que as beneficiárias passam a assumir uma maior responsabilidade com sua
vida, a sentir-se mais “à vontade”, como afirmaram muitas delas nos
depoimentos, passam a se perceber como pessoas reconhecidas pela sua
comunidade, justamente por causa da regularidade da renda, que faz com
que os comerciantes lhes concedam crédito, por exemplo.
“Sem
esta possibilidade de planificar pelo menos minimamente sua vida, um
ser humano se parece com um animal preocupado somente em caçar comida
para si e para seus filhotes”, compara Pinzani.
“Neste
sentido, na fala de algumas das mais desprovidas dessas mulheres,
emerge a sensação de se ter alcançado somente agora uma realidade
plenamente humana. Mas também as outras reconhecem que suas opções
existenciais aumentaram significativamente – e isso pode ser lido como
um aumento de sua autonomia moral.”
Trecho do livro
Em
seguida nos dirigimos para a residência de Dona Madalena, agora com 35
anos. Encontramo-la “batendo feijão” na sua minúscula propriedade. Veio
nos atender de modo sorridente, muito diferente do ano anterior, quando a
encontramos lacônica, de semblante sombrio, tendo caído em prantos a
certa altura da entrevista. Fotografamo-la juntamente com seus filhos, e
neste momento ela fez questão de contar que no ano anterior a tínhamos
encontrado num dos momentos mais difíceis de sua vida, pois queria se
separar do marido. Agora, havia conseguido a separação e a vida havia
melhorado muito. Perguntamos-lhe quanto estava recebendo pelo programa
BF, e ela muito alegre nos disse: “Estou recebendo R$ 112 com esse
pequeno aumento que teve”.
À
pergunta sobre o que havia mudado na sua vida após seu ingresso no
programa Bolsa Família, Madalena respondeu: “Adoro, porque eu não sei o
que seria da minha vida sem ele, né? Ia ficar meio difícil, com três
filhos. Acho ótimo, ótimo, porque se não fosse o Bolsa Família, eu não
sei o que seria da família pobre”.
Do
ponto de vista das mulheres entrevistadas, salta aos olhos seu desejo
de garantir um futuro melhor a seus filhos. Pode-se dizer que é essa
quase sua única esperança na vida: fazer deles pessoas menos destituídas
de capacitações do que elas, enfim, equipá-los melhor para que busquem
outro destino.
(Relato em Inhapi-AL, em 2007)
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