Publicado em 14/03/2011
carta capital
Finalmente consegui fazer uma reportagem que queria há muito tempo: um
perfil dos embaixadores que assinam os telegramas do WikiLeaks e de
como funciona a diplomacia americana. Uma reportagem de fundo, mais que
necessária para quem se interessa por ler os documentos. Fiz a
reportagem em parceria com a excelente Marina Amaral. Abaixo, a íntegra do texto.
O Brasil do embaixador Clifford Sobel é o sonho de qualquer empresário
americano. Se vai à Bahia é recebido por baianas em roupas típicas e
termina o dia tomando champagne na casa de Nizan Guanaes. No Sergipe é
condecorado com a ordem de Aperipê e deixa-se fotografar dançando e
tocando pandeiro ao lado do governador Marcelo Déda. Coleciona histórias
de pescarias no Pantanal e aventuras na Amazônia para contar nas rodas
de negócios em Belo Horizonte. Sente-se “em casa” em São Paulo, “lembra
Nova York”, onde o embaixador faz palestras e reuniões e janta no
Fasano. A mulher, Barbara, “loves the Carnival”, passados em camarotes
oficiais no Recife, Salvador e no “lindo Rio”, como diz Sobel à revista
Caras. Nos 9 primeiros meses de Brasil, conta à revista, o casal visitou
onze Estados brasileiros e abrilhantou tantas festas que o colunista
Ancelmo Góis chegou a inventar uma expressão para se referir a eles:
Party Rice, ou arroz de festa.
Na casa do embaixador em
Brasília, que Clifford ocupou entre 2006 e 2009, os convidados se
encantam com a elegância agradável das recepções e cerimônias, e Sobel
marca jantares e reuniões sigilosas com as fontes cultivadas na animada
vida social. O senador Heráclito Fortes (DEM-Piauí), por exemplo,
estivera com ele no camarote do governador Sérgio Cabral, no Rio de
Janeiro, durante o carnaval. Meses depois, tomou a iniciativa de lhe
telefonar na manhã daquele 5 de novembro de 2007 para pedir uma reunião
“urgente” sobre um assunto que ele “não podia discutir por telefone”.
Ao embaixador e seu assessor militar, o presidente da Comissão de
Relações Internacionais e Defesa do Senado disse que havia uma
conspiração entre Irã, Rússia e Venezuela para disseminar ideologia
antiamericana e armar os governos e movimentos “populistas” da América
do Sul em território brasileiro. E instou para que os Estados Unidos
reagissem, sugerindo uma parceria com as indústrias de armas do Brasil e
da Argentina para “não atrair publicidade ligando o governo americano
ao incremento da venda de armas”.
Em novo encontro, este no dia
28 de março de 2008, o senador o alertou sobre uma guerrilha similar às
Farc que estaria atuando em Rondônia, a Liga dos Camponeses Pobres
(LCP), “com acesso à tecnologia russa ou iraniana”, e falou sobre uma
insólita infiltração terrorista estrangeira através da ONG Cepac,
ligada, segundo ele, a uma “facção trotskista do PT”, que estaria
atuando no seu Estado, o Piauí.
“Fortes, mais do que a maioria,
está prestando atenção ao que considera ameaças emergentes dentro e
fora do Brasil. Suas preocupações sobre a LCP e a Cepac parecem válidas,
com base nas informações de que ele dispõe, mas nós não temos
informações suficientes para avaliar a acuidade e a seriedade da
situação”, escreveu Sobel a Washington.
A frase vem de apenas
um dos 250 mil documentos diplomáticos vazados pelo WikiLeaks. Quase 3
mil se referem ao Brasil – 63 despachos do departamento do Estado e 2919
telegramas enviados entre 2002 e 2010 (1947 provenientes da embaixada
em Brasília e 909 dos consulados de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife).
Entre esses documentos, apenas cerca de 1/5 são classificados – 468 são
confidenciais e 73, secretos
Comentários picantes
Divertidos, absurdos, curiosos, e até sofisticados na visão de alguns
especialistas, os telegramas constroem uma narrativa dos bastidores das
relações bilaterais durante todo o governo Lula, do ponto de vista dos
representantes americanos. Parte dos relatos de campo ou relatórios
internos – como são chamados pelos diplomatas – surpreenderam pela
superficialidade, baseados em fofocas, fontes duvidosas e análises
acríticas do material publicado pela imprensa brasileira.
“Os
americanos são informais, é o estilo deles, mas essa troca mais ou menos
franca de informações faz parte do cotidiano diplomático de muitos
países. O objetivo é transmitir as percepções do embaixador e de outros
funcionários graduados aos que traçam a política externa em Washington”,
explica o ex-ministro e ex-embaixador brasileiro nos Estados Unidos,
Rubens Ricúpero.
Por isso, é difícil determinar o peso desses
telegramas nas decisões tomadas pelo Departamento do Estado, Casa Branca
e Senado, os órgãos que comandam oficialmente a política externa
americana. Para alguns especialistas, o valor dos relatórios varia
conforme a credibilidade e a influência do embaixador. Outros, como o
professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Reginaldo Mattar Nasser,
defendem a tese de que os papéis têm “tão pouca importância quanto os
embaixadores”.
“O Senado mantém seu poder na política externa,
mas o Pentágono e o sistema de segurança nacional ocupam um espaço cada
vez maior nas decisões. Agora, o Pentágono destina verbas para a
reconstrução das nações e faz operações de ajuda humanitária, que
encobrem ações militares. Tem verbas do Pentágono até para cuidar de
Aids na África”, explica Nasser.
Já o pesquisador Robert
Naiman, do instituto americano Just Foreign Policy, acredita que o papel
dos embaixadores continua a ser “importantíssimo” para dizer a
Washington “qual a verdade, qual a mentira sobre o que está acontecendo
no país em que estão”. Mas, constata o pesquisador, nem sempre os
relatórios são levados em conta, como mostram os documentos do
WikiLeaks: “Um mês depois do golpe de 2009, em Honduras, o embaixador
dos EUA, que é bastante experiente, escreveu um telegrama avaliando que o
golpe fora absolutamente ilegal. O que se viu foi que a política
adotada pelos EUA diferiu dramaticamente do que o embaixador disse”,
afirma. Outro telegrama destacado pelo pesquisador pela “flagrante
discrepância” com a política oficial foi enviado em maio de 2009, pela
embaixadora do Paquistão Anne W. Patterson. Nele, Ann afirma que a
estratégia americana de aumentar a ajuda econômica não vai deter a
expansão do Talibã. “Esse conselho jamais foi implementado”, diz Naiman.
Não-diplomatas
Para os especialistas, o papel do embaixador perde seu peso porque dos
governos americanos costumam oferecer a embaixada como um “presente” aos
aliados políticos. No caso dos Estados Unidos, quase sempre esses
aliados são importantes fundraisers (ou levantadores de fundos) das
campanhas presidenciais. Entre os 370 embaixadores nomeados por Bush em
2006, 133 eram não-diplomatas, com parco conhecimento dos países para
onde foram enviados.
“Eles (o governo americano) preferem
alguém que possa pegar um telefone e ligar direto para a Casa Branca, é o
sistema deles”, observa um alto diplomata do Itamaraty.
O
cientista político americano Riordan Roett, autor do livro The New
Brazil, lançado pela Brookings Institution Press, critica a atuação dos
não-diplomatas: “Eles não levam tão a sério seu papel como
profissionais. Washington sabe que vão ficar por 2 anos na carreira e
depois vão embora. O que ganham é uma espécie de honraria, serem
chamados de ‘embaixador’ por toda a vida. Então, são do tipo que vivem
em festas e casas noturnas”, diz.
“Quarenta por cento só estão
ali porque contribuíram para levantar fundos – 400 mil dólares compram
um tíquete de embaixador, e os indicados políticos defendem sempre o que
é melhor para o governo que os colocou lá”, completa a ex-embaixadora
Ann Wright, que renunciou à carreira depois da invasão do Iraque para
não ter que defender a política externa de seu país. Para a
ex-diplomata, o pior é que esses embaixadores servem ao governo e não ao
Estado. “Muitos não conhecem bem o país e estão apenas para implementar
o que forem mandados”.
Ann, que deixou a carreira diplomática
depois de 16 anos de serviço, afirma que a maioria são homens de
negócios. “Seu principal objetivo é expandir seus interesses econômicos
em países específicos. Muitos voltam aos países depois, porque já
conheceram todo mundo – é muito benéfico financeiramente para eles”.
O amigo americano
Clifford Sobel, empresário experiente no setor financeiro e pioneiro em
telefonia por internet é fundraiser do partido republicano. Ele e a
mulher, Barbara, figuram entre os 241 Bush Pioneers em 2000, e entre os
221 Bush Rangers em 2004 – ou seja, levantaram pelo menos 100 mil
dólares para a campanha presidencial de 2000 (pioneer), e acima de 200
mil dólares para a campanha de 2004 (ranger). A Family Sobel Foundation,
dirigida por Barbara, também doou 81 mil dólares aos candidatos
republicanos em 2004. Como pioneer, Sobel recebeu a embaixada da
Holanda, onde ficou até 2005. Na categoria ranger em 2004, o prêmio foi
Brasil, que além de “paraíso tropical”, é o segundo maior parceiro
comercial dos Estados Unidos.
Quando chegou por aqui, em agosto
de 2006, não sabia quase nada do país – nem entendia o português. Seus
primeiros despachos mostram desconfiança a respeito de um suposto
“populismo” do governo brasileiro e à sua política externa. Em 30 de
outubro de 2006, comenta com ceticismo um encontro com a equipe de Lula
após a reeleição: “Nossos interlocutores estavam com o espírito elevado,
generosos com o mundo, incluindo os Estados Unidos. Mas sem uma mudança
no alto escalão do Ministério das Relações Exteriores, ficamos em
dúvida sobre a viabilidade de uma guinada das prioridades sul-sul do
primeiro mandato de Lula em direção aos Estados Unidos e ao mundo
desenvolvido”.
Sobel nunca conseguiu se entender muito bem com o
Itamaraty, mas manteve contatos próximos com o ministro da Defesa
Nelson Jobim, que considerava “o homem mais confiável do governo”, e o
general Armando Félix, do gabinete de Segurança Institucional. Talvez
por isso, um de seus relatórios mais “precisos”, na opinião do
ex-embaixador Ricúpero seja o que avalia o Plano Nacional de Defesa do
governo: “Amigos meus, que trabalham na área da defesa, disseram-me que
esse telegrama foi altamente apreciado, com análise de grande
competência e opiniões sensatas, apesar de terem se irritado com
bobagens como chamar o submarino nuclear de ‘baleia branca’”.
Mesmo assim, Sobel saiu sem conseguir convencer o “amigo” Jobim a optar
pelos caças americanos na disputa com franceses e suecos. Também falhou
na missão de levar o Brasil à Associação de Livre Comércio das Américas
(Alca), mas foi mais bem-sucedido quando deixou de lado os negócios
governamentais e se concentrou em “estreitar as relações entre as
empresas brasileiras e americanas”, como registrou um perfil sobre ele
publicado na revista Exame, em fevereiro de 2008, com o título: “O amigo
americano”.
Isso porque, na embaixada, ele acompanhou de perto
os dois setores que lhe pareciam os mais promissores do país: etanol e
telecomunicações. Empenhou-se para fechar um acordo entre a Santelisa
Vale (fusão das usinas Santa Elisa e Vale do Rosário e de mais três
empresas paulistas) e a americana Dow Chemical, comparecendo em caráter
oficial à cerimônia de assinatura de um acordo comercial, em julho de
2007, que previa a produção de 350 mil toneladas de polietileno com
tecnologia da companhia americana (o negócio foi interrompido na crise
econômica de 2009). Também se interessou pelo processo que levou ao
fechamento do maior negócio de telecomunicações realizado no país desde
as privatizações: a compra da Brasil Telecom pela Oi por 4,85 bilhões de
reais, arquitetada pela Angra Partners, que representava os fundos de
pensão na Brasil Telecom, e que também comandou o processo de fusão da
Santelisa Vale.
Com a vitória de Barack Obama – o candidato
republicano à presidência novamente havia recebido recursos do casal
Sobel – ele deixou a embaixada. Em julho de 2009, depois de muitas
festas de despedida, ele saiu oficialmente do cargo, mas continuou a
aparecer em companhia de sua elegante Barbara nas colunas sociais. Em
agosto de 2010, por exemplo, ela organizou mais uma vez o concorrido
jantar de sua Associação Américas Amigas, no hotel Hyatt, em São Paulo,
para arrecadar fundos para ONG que fundou, com o objetivo de doar
mamógrafos. No final do ano passado, instalaram-se definitivamente no
país e, sem muito alarde, Sobel associou-se à Angra Partners, um negócio
pra lá de promissor. A empresa se nega a confirmar.
Mas,
procurada por CartaCapital, Barbara desfez as dúvidas neste simpático
e-mail: “Decidimos continuar morando no Brasil por causa de nossos
fortes vínculos com a cultura e o povo brasileiro. O embaixador Sobel se
tornou sócio de um private equity group chamado Angra Partners e eu
continuo à frente da Associação Américas Amigas. Escolhemos comprar um
apartamento em São Paulo porque é o principal centro de negócios do
país, onde estão as sedes da Angra Partners e da Américas Amigas.
Estamos aqui para ficar!”.
Dilma, assaltante
O embaixador
que antecedeu Sobel, o empresário republicano John Danilovich, também
teve final feliz depois de servir no Brasil. Danilovich é aquele que
ficou famoso por ter afirmado, em um telegrama a Washington em 22 de
junho de 2005, que a atual presidenta Dilma Rousseff havia organizado
três assaltos a banco e cofundado a Vanguarda Armada Revolucionária de
Palmares – um erro profissional que se tornou gafe internacional depois
de vazado pelo WikiLeaks.
Empresário da marinha mercante,
Danilovich mantém uma relação de longa data com a família Bush. Em
Londres, onde cursou mestrado e viveu durante muitos anos, organizou o
apoio republicano para a eleição de Bush, o pai. Foi nomeado, durante
seu governo, para o Comitê Diretor do Canal do Panamá, e dirigiu a
comissão que tratou da devolução do canal, em 1999. No ano seguinte,
Danilovich, importante doador da campanha de George W. Bush, foi nomeado
para embaixada da Costa Rica. Em 2004, substituiu a diplomata Donna
Hrinak na embaixada brasileira, onde ficou até o final de 2005.
Durante sua rápida atuação no Brasil, empenhou-se em costurar uma
aliança anti-Chávez no continente, a ponto de tentar convencer o
ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, a ajudar a espionar o
vizinho, propondo “um acordo de compartilhamento de inteligência”, como
revelou um telegrama de 15 de março de 2005. Amorim, é claro, respondeu
com irritação: “Não vemos Chávez como uma ameaça”.
Danilovich
não desistiu. Ao Estado de S. Paulo afirmou que Chávez estava
financiando a campanha Evo Morales, então na oposição, à presidência da
Bolívia. Um telegrama mostra que ele voltou à carga em reunião com o
General Jorge Armando Félix, no dia 4 de maio de 2005. Disse que Chávez
estava “prejudicando os esforços do Brasil em ter um papel de liderança
política e econômica na América do Sul”. Félix respondeu que divergia da
posição do governo, mas preferia seguir a linha oficial.
Um
ano depois da segunda eleição de Bush, Danilovich deixou o Brasil para
assumir a liderança de uma corporação tão milionária quanto nebulosa:
tornou-se CEO da Millenium Challenge Corporation, agência
“independente”, ligada e financiada pelo governo americano. No período
em que esteve à sua frente, entre novembro de 2005 e janeiro de 2009,
ele gerenciou 6,3 bilhões de dólares de fundos aprovados pelo Congresso
Americano. A missão oficial da MCC, segundo seu site, é fornecer
assistência econômica a países pobres que se comprometem a seguir a
cartilha neoliberal: governar com justiça, manter uma política fiscal
responsável, incentivar os negócios.
Em 2008, por exemplo, o
MCC bloqueou ajuda para projetos da Nicarágua em retaliação a suspeitas
de fraude eleitoral por parte do governo sandinista de Daniel Ortega.
Mas, em 2009, a corporação continuou a mandar ajuda para Honduras, mesmo
depois do golpe que tirou Manuel Zelaya do poder, em 28 de junho.
Profissionais do ramo
Menos constantes nos telegramas vazados pelo WikiLeaks, os dois
diplomatas de carreira do período Lula destacaram-se pelos bons
resultados em prol das relações bilaterais. Thomas Shannon, o atual
embaixador, escolhido por Obama, teve forte atuação em favor do Brasil
para superar a crise provocada pela aproximação com o Irã, nos últimos
dois anos. Já a diplomata Donna Hrinak, que ficou no cargo entre 2002 e
2004, teve papel fundamental para aproximar os dois países em um momento
em que o governo Bush acompanhava com apreensão a chegada do operário
“vermelho” à presidência do Brasil.
Filha de um metalúrgico de
Pittsburgh, Hrinak havia sido vice-cônsul em São Paulo na década de
1980, e acompanhou com entusiasmo as greves do ABC paulista sob a
ditadura militar. Quando voltou ao país, em abril de 2002, era fluente
em português e tinha quase 30 anos de serviço diplomático – foi
embaixadora na Bolívia, na Venezuela e na República Dominicana. Na
recepção, um jornalista perguntou o que ela achava de Lula: “Não temos
medo de Lula. Ele encarna o sonho americano”.
Durante a
campanha presidencial, a embaixadora reuniu-se com Lula e com o homem
escolhido pelo PT para azeitar as relações com os americanos: José
Dirceu, conhecido de Hrinak desde a década de 80. Enquanto Dirceu
visitava a Casa Branca e o Senado americano, em julho de 2002, levando
uma cópia traduzida da “Carta ao Povo Brasileiro”, ela enviava a
Washington telegramas garantindo que, se o PT vencesse, não haveria
calote na dívida externa.
As vésperas do segundo turno, Hrinak e
o então embaixador brasileiro em Washington, Rubens Barbosa – instruído
pelo próprio Fernando Henrique Cardoso – empenharam-se em articular uma
ligação telefônica de Bush, caso Lula fosse eleito. Bush ligaria caso
Serra ganhasse, mas uma ligação para Lula seria um forte sinal de apoio,
declararia depois a diplomata. A ligação veio poucas horas depois do
resultado. “Parabéns pela grande vitória… O senhor conduziu uma campanha
fantástica”, dizia Bush ao telefone.
O primeiro e único
telegrama de 2002 na série vazada pelo WikiLeaks relata a primeira
visita oficial de um representante do governo americano ao Brasil depois
da eleição de Lula. O subsecretário de estado americano Otto Reich
descreve o encontro com José Dirceu, Antonio Palocci e Aloizio
Mercadante como “caloroso e produtivo” e conta que Lula, “animado,
elegante e descansado”, disse, logo de cara, que queria ter uma boa
relação com Bush: “Acho que dois políticos como nós vamos nos entender
quando nos encontrarmos frente a frente”. No final do encontro, Reich
foi taxativo: “Nós não temos medo do PT e da sua agenda social”.
Donna havia ganhado a parada. Em dezembro daquele ano, o presidente
americano receberia Lula na Casa Branca, antes mesmo da posse.
O
cientista político Riordan Roett não tem dúvidas da importância pessoal
da ex-embaixadora para costurar as relações bilaterais. “Ela era muito
popular entre os políticos de Brasília, tinha acesso ao governo e à
oposição, falava português e entendia a dinâmica brasileira”.
Ao se aposentar em 2004, Donna saiu do país com um namorado brasileiro,
algumas plásticas no rosto e o bordão de que “o Brasil não é
antiamericano” – que Shannon teria de repetir à exaustão cinco anos
depois.
Itamaraty, o adversário
Nomeado por Obama em 28 de
maio de 2009, Thomas Shannon só chegou ao país em janeiro de 2010 devido
à oposição a seu nome no Senado. O republicano Charles Grassley, do
estado produtor de etanol Yowa, atrasou a confirmação por Shannon
defender o fim da tarifa de US$ 0,54 sobre o etanol brasileiro exportado
pelos EUA.
Outros dois senadores republicanos o vetaram por
sua atuação durante o golpe de Honduras. Como subsecretário do
Departamento de Estado para o Hemisfério Ocidental entre 2005 e 2009,
Shannon amargurou a derrota da diplomacia aos interesses comerciais de
seu país. Enquanto o governo americano começou deplorando o golpe,
acabou por aceitá-lo sob pressão do empresariado ligado à elite
hondurenha. A opinião do próprio embaixador, como vimos, acabou sendo
totalmente desconsiderada. Quando Manuel Zelaya voltou ao país e se
hospedou na embaixada brasileira, Shannon se reuniu com a ministra do
exterior do governo de facto, Patricia Rodas, para pedir o envio de
comida e água, como registra um telegrama de 22 de setembro de 2009.
Diplomata de excelente reputação e experiente – atuou nas embaixadas da
Venezuela, África do Sul, Camarões, Gabão, Guatemala e São Tomé e
Príncipe, além de representar os Estados Unidos na OEA –, Thomas Shannon
chegou ao país em plena crise provocada pela aproximação do governo
Lula com o Irã, defendida pelo governo como parte de sua estratégia
sul-sul e de defesa da equidade dos países diante do Tratado de
Não-Proliferação de Armas Nucleares. Para complicar, Lula estava de
visita marcada para o Irã em maio, e o presidente Mahmoud Ahmadinejad
estivera no país quarenta dias antes da chegada do novo embaixador.
Segundo o pesquisador Riordan Roett, Brasil e Estados Unidos haviam
chegado a um impasse por conta de um “desentendimento típico das
relações diplomáticas”, causado por uma carta sobre o assunto enviada
por Obama a Lula. O pesquisador, que atribui a informação a um
ex-ministro de relações exteriores brasileiro, explica: “Enquanto o
Brasil pensou que era um sinal positivo (para continuar as negociações
com o Irã), o pessoal de Washington a via como uma advertência para que o
Brasil fosse cuidadoso”. Segundo ele, “esse mal-entendido levou a uma
série de erros que culminaram no conflito sobre as sanções na ONU”.
No dia 8 de janeiro de 2010, algumas horas depois de desembarcar no
país, Shannon foi procurado por Celso Amorim, que quebrou o protocolo, e
iniciou a conversa, lamentando a demora na aprovação de seu nome: os
dois países haviam “perdido um tempo precioso”, disse-lhe o ministro
brasileiro.
Os telegramas deixam transparecer o entusiasmo da
equipe do Itamaraty com a vinda de Shannon e o empenho de Amorim para
explicar melhor a posição brasileira: “O Brasil pode contribuir e ser
uma voz positiva em temas sobre o Oriente Médio e o Irã”, disse Amorim,
acrescentando que, durante a visita do presidente Mahmoud Ahmadinejad, o
Brasil manifestou sua preocupação em relação aos direitos humanos no
Irã. Por fim, Amorim pediu a Shannon calma nas negociações, pois mais
pressão poderia gerar resistência interna. “Está claro que o ministro do
exterior está ansioso para começar a nova fase de relações entre o
Brasil e os EUA. Da perspectiva brasileira, o diálogo sobre temas não só
regionais, como globais, será importante”, comentou Shannon no
telegrama.
O recado parece ter sido compreendido. No auge da
crise, o embaixador viajou a Washington para acalmar o governo
americano, como conta o professor Matias Spektor. “O fato de Shannon ter
legitimidade como interlocutor foi decisivo para que isso não se
tornasse crítico. E continua sendo importante agora, em que o Brasil
emerge como potência internacional, e ainda não está claro como isto
está sendo recebido em Washington, há uma série de interesses que sentem
essa ascensão como um risco”, diz Specktor.
Shannon tem atuado
no sentido que o Brasil deseja: “A partir de agora, os Estados Unidos
precisam tratar o Brasil de igual para igual”, costuma afirmar.
O embaixador mostra-se, inclusive, mais sofisticado nas análises sobre a
eleição presidencial de 2010 do que outros integrantes do corpo
consular. Enquanto Shannon tenta relatar os fatos com sobriedade,
funcionários da embaixada enviavam despachos a Washington que nem o mais
fanático dos eleitores tucanos seria capaz de acreditar. A
possibilidade de Aécio Neves aceitar o posto de vice na chapa de José
Serra, descartada pelo senador mineiro no fim de 2009, ainda era dada
como certa nos telegramas do início do ano seguinte. Sem falar no balão
de ensaio de uma dobradinha Serra-Marina Silva, sustentado com
entusiasmo em despachos durante o processo eleitoral.
Shannon
tem se esforçado em prol das relações bilaterais, mas não tem sido
fácil. O governo Obama deixou claro que não vai apoiar demandas do
Brasil, como o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, nem
acabar com a tarifa sobre a importação do etanol, outra reivindicação
importante de Brasília. Além disso, alguns telegramas da embaixada
revelam que nos últimos anos os EUA fizeram um verdadeiro boicote às
pretensões brasileiras de ter um programa espacial e nuclear
independente.
Talvez seja por isso que o vazamento do WikiLeaks
tenha dado tantas dores de cabeça a Shannon. Segundo o embaixador, seu
trabalho foi afetado pela quebra da “garantia de confidencialidade” que
permitiria conduzir “discussões francas” e o “diálogo honesto” entre os
países.
Valeu a pena?
Para alguns especialistas, porém, a
publicidade dos telegramas pode, surpreendentemente, favorecer as
relações bilaterais. “O benefício foi maior do que o dano”, diz o
ex-embaixador Rubens Ricupero. “Muita coisa de que se suspeitava foi
confirmada, como a existência de um antiamericanismo gratuito em uma
parte do governo brasileiro, enquanto outros setores dentro do próprio
governo se mostram mais abertos. Ou seja, não é um bloco fechado, há
espaço para uma mudança psicológica que pode se refletir em uma relação
melhor entre os dois países, com menos preconceitos”, afirma Ricupero.
“Para quem está lá nos Estados Unidos, saber que existem essas
diferentes visões entre Ministério da Defesa e Itamaraty ou entre
Itamaraty e Planalto serve como filtro para as informações que recebem
do Brasil”, completa o professor Matias Specktor.
Parece ser
nisso que os governos dos dois países estão apostando. Enquanto o
governo Lula minimizou a importância dos documentos e a sucessora Dilma
sequer comentou as revelações mais recentes, o Itamaraty se esmera em
preparar a visita do presidente Obama ao Brasil, marcada para os dias 19
e 20 de março, quando ele fará um discurso histórico. “Pelo que se sabe
até agora, Obama vai dizer em alto e bom som que os Estados Unidos
consideram positivo o fato de um país como o Brasil, uma grande
democracia, estar emergindo como potência internacional – o que tem
grande peso pois contraria interesses de setores americanos”, afirma
Specktor.
Será a segunda visita do alto escalão americano
neste ano – Hillary Clinton veio especialmente à posse de Dilma – algo
inédito. Resta saber como a relação vai se equilibrar nessa corda bamba
entre os conflitos de interesse e a vontade de aproximação. Pena que
dessa vez o grande público não terá acesso aos bastidores da negociação –
como permitiu o vazamento do WikiLeaks.
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