sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Dentro do Opus Dei

28/10/2005

Revista Época

Ex-membros contam em livro os bastidores de autoflagelação, manipulação mental e estratégias de poder da prelazia católica

ELIANE BRUM


Até dois anos atrás, Jean Lauand encaixava diariamente na coxa por duas horas um anel com pontas de ferro chamado cilício. Uma vez por semana se autoflagelava com um chicote enquanto rezava a salve-rainha. Lauand não é um psicótico vivendo um delírio medieval. É professor titular da Universidade de São Paulo, doutor em Filosofia e História da Educação e renomado especialista em São Tomás de Aquino. O cotidiano de mortificações é explicado pelos 35 anos em que pertenceu ao Opus Dei, poderosa prelazia da Igreja Católica. Dos 16 aos 51 anos manteve-se casto. Ao sair, havia doado R$ 1 milhão à instituição. Com outros dois ex-membros, o juiz Marcio Fernandes da Silva e o cardiologista Dario Fortes Ferreira, escreveu o livro Opus Dei - Os Bastidores, lançado no fim de outubro.


É a primeira vez no Brasil que ex-adeptos da organização fundada há 77 anos por Josemaría Escrivá contam sua experiência em livro. Na Espanha, onde 'a Obra', como é chamada, surgiu, já existe uma bibliografia com denúncias de ex-integrantes. Os brasileiros criaram também o site www.opuslivre.org, usado pelos dissidentes para trocar confidências. Má notícia para a instituição, que ainda luta para recuperar-se dos danos causados a sua imagem pública pelo best-seller O Código Da Vinci, de Dan Brown.

O poder do Opus Dei não emana do número de adeptos, mas do lugar que ocupam na sociedade. No Brasil, a Obra tem oficialmente 1.700 seguidores - são 80 mil no mundo. Pouco, se comparado aos milhões de carismáticos, mas quase todos têm curso superior e estão estrategicamente instalados em zonas de poder. A categoria dos numerários, à qual pertenciam os autores, é a elite da organização. Vivem nos centros, são celibatários e doam bens e salários.

Numerário citado no livro, o jornalista Carlos Alberto Di Franco diz que a publicação 'é inconsistente, um factóide'. 'A forma como me citaram foi uma difamação. A instituição foi apresentada como uma monstruosidade', critica. A direção do Colégio Catamarã, também citado, não deu resposta ao pedido de entrevista. O Escritório de Informações do Opus Dei fez uma declaração: 'A prelazia do Opus Dei lamenta a publicação por tratar-se de um texto repleto de falsidades que deturpam grotescamente a realidade vivida nesta instituição, querida e abençoada pela Igreja Católica, que sempre contou com o manifesto apreço e estímulo dos papas que a conheceram'.

Os três autores seguem católicos praticantes. 'Estou com vergonha dos colegas na USP, mas decidi me expor por amor à Igreja, que é usada pelo Opus como um escudo para se proteger das denúncias', diz Lauand. Na terça-feira, Lauand e Marcio Fernandes da Silva receberam ÉPOCA para a seguinte entrevista.


Dados pessoais
Paulista, 53 anos, pertenceu ao Opus Dei por 35 anos, de 1968 a 2003
Carreira
Professor doutor de Filosofia e História da Educação na USP, especialista em São Tomás de Aquino
Dados pessoais
Paulista, 33 anos, passou a freqüentar o Opus Dei aos 10 anos e tornou-se numerário aos 15

Carreira
Formado em Engenharia Química e Direito pela USP, juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de SP
JEAN LAUAND E
MARCIO DA SILVA (à dir.)

Foto: Maurilo Clareto/ÉPOCA

ÉPOCA - Por que escreveram o livro?
Jean Lauand -
Depois de descobrir que fomos manipulados por anos, saíamos culpados, com problemas psicológicos. Os ex-membros são tratados como mortos. Fotografias e registros são suprimidos dos arquivos. Seu nome não pode ser citado. Criamos o site para que as pessoas pudessem se encontrar e trocar experiências. A certa altura, pensamos em acabar com ele. Então o Dario (Fortes Ferreira) disse: 'Não quero que meus filhos sejam enganados pelo Opus Dei por falta de informação'. Recolhemos 150 depoimentos. O livro ficou pronto em seis meses.


ÉPOCA - Vocês entraram para o Opus Dei antes dos 18 anos. É uma estratégia aliciar adolescentes, por ser uma fase da vida em que se está confuso com o lugar no mundo, descolando-se da família e em busca de um grupo?
Marcio Fernandes da Silva -
O que está por trás é a inexperiência típica dessa fase. É muito mais fácil doutrinar uma personalidade em formação. Aliciam nos clubinhos anexos ao centro. Tem autorama, montagem de aquários, coisas artísticas. Atividades de fachada para que a criança vá se acostumando com o grupo. Mais recentemente o aliciamento começou a ser feito no Colégio Catamarã, escola de educação fundamental com separação de sexos, em São Paulo. Mas não dizem que é do Opus Dei. É dirigido por pessoas fortemente ligadas à Obra. Dentro do Opus Dei, o Catamarã é chamado de 'cata-moleques'.

ÉPOCA - Você conta que quando estava na Obra fazia aliciamento e não dizia que era do Opus Dei…
Silva -
Fazer proselitismo é uma das obrigações dos membros. Você precisa conseguir outras vocações. Convidava colegas de escola para participar dos clubes. Dizia que era um centro cultural. Mais tarde convidava para uma meditação do sacerdote. Obedecia à instrução do diretor: 'Só depois você conta que é do Opus Dei, para que primeiro a pessoa conheça o centro e se envolva'. #Q:Dentro do Opus Dei - continuação:#


Arturo Mari/AP
PODER O papa Bento XVI abençoa a estátua de São Josemaría Escrivá
ÉPOCA - Usavam o cilício?
Lauand -
Todos usavam, não só eu. Duas horas por dia. E as disciplinas, autoflagelação, uma vez por semana enquanto dura uma oração, por exemplo, uma salve-rainha. Dá algumas dezenas de chicotadas nas nádegas. Isso é visto como uma grande manifestação de amor a Deus. Tem o sentido da penitência. A primeira coisa que eu fiz quando saí foi jogar o cilício fora.
Silva - Parece uma coleira de cachorro com pontas de ferro que penetram na carne. Você encaixa e faz pressão na perna. É significativo, porque mostra o grau de controle mental que a instituição consegue sobre o indivíduo.

ÉPOCA - Por que se submeteram?
Silva -
Entramos muito jovens, nosso mundo passa a ser aquele, todos os nossos amigos estão lá. Somos proibidos de ler o que queremos, de ir ao teatro e ao cinema, a TV é chaveada, o jornal já chega editado. Somos proibidos de ter amizade com gente de fora, nosso contato com a família é restrito. E ainda ficamos 43 dias por ano em reclusão. Vivemos numa bolha. Nem sequer podemos escolher a armação dos óculos que usamos.

ÉPOCA - Vocês mencionam a 'Conversa Fraterna', em que precisam revelar todos os pensamentos. Como é?
Lauand -
Uma vez por semana, 45 minutos do que chamam de 'sinceridade selvagem'. Não se pode esconder nada. Assim ficam sabendo de tudo. São Josemaría prescrevia contar as coisas que você não gostaria que outra pessoa soubesse, começando com 'o sapo gordo que está dentro da alma'. Se não conta, cria 'um segredo com Satanás'.

ÉPOCA - Como funciona a estratégia de ocupação das instâncias de poder na sociedade, como mídia e Judiciário?
Silva -
O Opus Dei busca o poder sobre o pensamento do indivíduo 24 horas por dia. Como os membros são bem situados, é através do poder sobre eles que conseguem influenciar as instituições. O pensamento básico é: o mundo e a própria Igreja Católica estão perdidos, mas nós temos a salvação porque recebemos a mensagem de Deus de santificar todas as realidades terrenas. O fundador tem uma frase: 'Temos de embrulhar o mundo em papel impresso'. É um plano do Opus Dei. No Brasil entraram com tudo nas redações.
Lauand - Na mídia, há um gênio que é o Carlos Alberto Di Franco, pessoa de uma simpatia e sedução incomparáveis e ä que há anos realiza o Curso Master em Jornalismo da Universidade de Navarra, que é do Opus Dei. Ele faz parte dos intocáveis de que falamos no livro. Tem privilégios para mostrar uma imagem pública glamourosa da instituição, pode fazer coisas proibidas para os demais numerários.



'Entre os livros proibidos estão todos os filósofos, desde Descartes, e autores como Saramago, Joyce e Umberto Eco. Há restrições para o Alienista, de Machado de Assis'
JEAN LAUAND



ÉPOCA - Poder para quê?
Lauand -
Poder em si. Vou dar um exemplo de como o Opus Dei age. Em 1980, João Paulo II, que recentemente tinha se tornado papa, veio ao Brasil. O Opus Dei estava interessado em conseguir o estatuto de prelazia e a beatificação do fundador. Em 1980, a Obra estava em São Paulo e mal-e-mal em Curitiba, no Rio de Janeiro e em Campinas. Montou-se uma operação de guerra dizendo que no Brasil só havia bispos de esquerda e que era preciso demonstrar ao papa, que havia sofrido horrores com os comunistas na Polônia, que podia contar com o carinho do Opus Dei. Aonde quer que o papa fosse, de Porto Alegre a Fortaleza, aparecia gente com faixas em que estava escrito 'Univ, totus tuus'. Univ é o nome de um congresso ligado ao Opus Dei e 'totus tuus' significa 'todo teu', e era o lema de João Paulo II. Eu comandei essa operação em Brasília. A ordem era aparecer na mídia a qualquer preço. Dez pessoas deviam fazer o barulho de mil. Conseguiram a prelazia dois anos depois. Outro exemplo: o grande sonho de João Paulo II era ir à Rússia, o que nunca foi possível. Mas na Páscoa, em Roma, em um encontro com jovens do Opus Dei, encontrou 31 russos: um de verdade e 30 de Navarra. Cantaram em russo perfeito. No final, um deles disse em russo que o amava. O papa se emocionou. Depois deram muita risada.

ÉPOCA - Homens e mulheres vivem totalmente separados no Opus Dei. A mulher é vista como algo pernicioso?
Silva -
Não se pode ficar numa sala fechada com uma mulher. Carona, nunca. Não se pode tratá-la no diminutivo. Beijinho no rosto, nem pensar. Se viajar de ônibus e sentar ao lado de uma moça, tem de trocar de lugar.
Lauand - Os homens podem dormir em colchões normais, as mulheres têm de dormir em tábuas. Têm de domar seus instintos perigosos. São proibidas de segurar crianças no colo e de ir a casamentos porque podem se deixar levar pela imaginação.
 
ÉPOCA - Como foi voltar ao mundo?
Silva -
Eu faço uma analogia com a cena do filme Matrix, em que Neo (personagem de Keanu Reeves) se liberta da cúpula em que funcionava como uma pilha para fornecer energia. Como ele, eu era apenas um instrumento da grande máquina de manipulação que é o Opus Dei. Já liberto, Neo está fraco, precisa refazer os músculos porque nunca os usou. Como ele, eu não estava pronto para viver fora da bolha. A instituição me destruiu. Busquei a ajuda de psicólogos. Tinha assumido personalidade robótica. Precisava me desprogramar. Foi como nascer de novo.




#Q:O juiz Marcio Fernandes da Silva conta como foi aliciado pelo Opus Dei quando ainda era um menino :#
'COM APENAS 15 ANOS GANHEI MEU KIT DE AUTOFLAGELAÇÃO'

Maurilo Clareto/ÉPOCA
Conheci o Opus quando eu tinha 10 anos. Fui convidado por um vizinho a participar das atividades do Clube Pinhal. Os 'clubes' do Opus Dei são sedes para captar garotos. Esse clube funcionava - e talvez ainda funcione - no subsolo do Centro Cultural Pinheiros, em São Paulo. Envolvia atividades manuais, brincadeiras, competições. Havia também uma aula de catecismo. Como meus pais nada sabiam sobre o Opus, deixaram-me freqüentar o clubinho. Aos 14 anos, passei também a participar do centro. Pouco a pouco, ia aumentando a dose de formação que recebia. O pessoal do centro foi me propondo participar de cada uma das atividades, como meditações e retiros, de maneira gradual. A certa altura, eu já ia quase todos os dias da semana para lá.

Aos 15 anos, um dos membros da instituição começou a insistir que eu também me tornasse um membro. Achava que ele estava enganado, que eu não tinha vocação nenhuma. Aí fiz um retiro. Uma das meditações teve como tema a vocação. O sacerdote insistiu na necessidade de sermos generosos. Perguntei ao sacerdote do centro se eu tinha vocação. Ele disse que sim, sem hesitar. Perguntei ao diretor, que também confirmou. Aquilo tudo me deu um mal-estar, uma sensação de beco sem saída. Minha idéia era casar, ter filhos, ser um cristão mais comum. Mas aquele era o pessoal que eu mais prezava, era o meu principal círculo de amizade. Depois de dez dias de dilema, 'apitei' - palavra que no jargão do Opus significa pedir admissão. Alguns numerários vieram me cumprimentar dizendo: 'Pax'. Eu deveria responder: 'In aeternum'. Naquele momento eu acreditava que Deus, falando através do sacerdote e do diretor, queria que eu fosse um membro do Opus. Pensei: 'Fui generoso'. Não contei nada aos meus pais. No Opus falavam que os pais não entendiam a vocação dos filhos, que o melhor era não falar nada ainda. Tornei-me numerário-adjunto, que ainda não mora no centro. O diretor foi me explicando como viver o chamado 'espírito da Obra'. Falou-me sobre o cilício, um cordão com pontas de ferro usado por baixo da roupa em uma das coxas, como mortificação obrigatória. Falou-me sobre as disciplinas, uma espécie de chicote de cordas usado uma vez por semana. Ganhei meu kit de autoflagelação. Aos 18 anos fui morar no centro.

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